Finanças


O risco de ressurreição nos dias de hoje da “jurássica” conta-movimento do Banco do Brasil – extinta por reforma financeira da gestão Sarney na presidência da República em meados dos anos 80 – foi recentemente aventado na imprensa pelo ex-presidente do Banco Central, Gustavo de Loyola, entre outros especialistas. Ele reagiu rapidamente à possibilidade, taxando-a de “grande retrocesso institucional” e que poderia colocar em risco as conquistas econômicas dos últimos anos do país. Entre elas, por exemplo, o sucesso no combate à inflação nos anos 90. Na verdade, à época, dar um fim à “bagunça monetária e fiscal”, – nas palavras de Loyola, ou à “promiscuidade” das finanças públicas, – nas palavras do ex-ministro da Fazenda, Maílson da Nóbrega, foram as primeiras medidas adotadas pelo governo Sarney na área. Elas viabilizaram em seguida, não só o êxito do Plano Real, como o processo de abertura da economia brasileira, afirma Nóbrega.


A crítica de Gustavo de Loyola refere-se à realização dos volumosos aportes de recursos a bancos oficiais, iniciados ano passado pelo governo Lula, sobretudo para capitalização do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES). As operações foram financiadas por emissões de títulos públicos, o que, segundo Loyola, significa a expansão do endividamento bruto do Tesouro Nacional, com implicações fiscais e monetárias para o setor público. Embora ressalve que tais operações integram o orçamento fiscal da União – o que não ocorria antes - ele acredita que o mecanismo tem “semelhança genética com a conta-movimento”, por suas implicações no mercado monetário. Embora a opinião seja polêmica – a medida foi defendida por muitos como antídoto que se mostrou eficiente no atenuamento da recente crise financeira internacional – há concordância geral, porém, em torno da importância do conjunto de medidas do início da Nova República, buscando a modernização das instituições monetárias e da contabilidade pública.
Foi o fim do primitivismo das finanças públicas, modelo provavelmente único no mundo, sublinha Maílson. Hoje, pós-extinção da famigerada conta-movimento e com um novo modelo consolidado, o Banco do Brasil restringe-se a funções típicas de um banco comercial, quando anteriormente confundia-se com uma autoridade monetária e detinha funções de banco do governo. Ou seja, como qualquer outro, agora o BB empresta para a indústria, agricultura ou comércio o recurso advindo da sua captação de depósitos à vista. O Banco Central, por sua vez, passa a ser efetivamente uma espécie de “banco dos bancos” e goza de independência, para exercer com autonomia seu papel de autoridade monetária principal do país. Recebeu tal competência da Superintendência da Moeda e do Crédito (Sumoc), Banco do Brasil e Tesouro Nacional. Cabe a ele a emissão de moeda, o recolhimento de compulsórios dos banco comerciais, a fiscalização das instituições financeiras, entre outras funções típicas de bancos centrais em todo o mundo. Mais, a Constituição Federal de 1988 estabeleceu à época, dispositivos importantes para garantir a estabilidade monetária no país. Por exemplo, exclusividade ao BC na competência para a emissão de moeda e proibição de concessão direta ou indireta, de empréstimos ao Tesouro Nacional (o caixa do governo). O Tesouro por sua vez – que detinha a função de emitir papel-moeda – passou a gerir as receitas públicas advindas dos impostos e da emissão de títulos (dívida pública federal).

Fontes
.“A Herança Econômica” de Maílson da Nóbrega, capítulo 4 do livro “Sarney- o outro lado da história”, organizado por Oliveira Bastos. Maílson é economista, consultor de empresas e foi o último ministro da Fazenda do governo Sarney.
.“Conta movimento, versão 2010” – artigo de Gustavo Loyola, publicado em O Estado de S. Paulo, em 15/02/10. Loyola, sócio-diretor da Tendências Consultoria, foi presidente do BC.

“Promiscuidade” entre Tesouro Nacional, BC e BB

O novo arcabouço para a estruturação das finanças públicas do país foi desenhado e implementado pelo governo Sarney, a partir de 1985. É preciso voltar na história econômica recente do país, para entender a importância de tal reforma, pois o quadro era caótico. “O governo Sarney mudou radicalmente esse quadro, apesar das resistências de poderosos grupos corporativos e da imcompreensão de funcionários graduados do Banco do Brasil e do Banco Central”, atesta o ex-ministro da Fazenda, Maílson da Nóbrega.
Na área das finanças públicas, a “promiscuidade” travava-se no relacionamento entre o Tesouro Nacional (o caixa do governo), o Banco Central e o Banco do Brasil. Os três se entrelaçavam no orçamento monetário, de onde saíam os recursos para as operações de empréstimo do Banco do Brasil e para as atividades de fomento do Banco Central, a maioria delas operadas com subsídios. “O grau de transparência era escasso. A execução do orçamento da União era realizada por um departamento do Banco do Brasil, provavelmente caso único no mundo. O Tesouro possuía uma administração artesanal e incapaz de fornecer, ao governo e à sociedade, informações amplas sobre a conta do governo federal”, aponta Maílson da Nóbrega.
O ex-ministro da Fazenda explica que a confusão derivada daquele arranjo institucional permitia que o BB e o BC operassem sem limites de desembolsos, “no mínimo uma aberração”. O BB se tornara o único banco comercial do mundo que não dependia de captação de recursos no mercado financeiro. Como não havia milagre, os recursos para viabilizar tal esquema se originavam no endividamento público (emissão de títulos). Para Maílson, “um mecanismo infernal”: “O Banco Central mantinha uma conta de movimento no Banco do Brasil, que constituía o canal de suprimento de recursos do Tesouro ao nosso maior estabelecimento de crédito”.

Entenda o processo

De foram simplificada, tudo se passava da seguinte forma: o BB podia fazer empréstimos, sem dispor dos recursos que iria emprestar, o que jamais acontecera na história do sistema financeiro. Se o banco captasse 100 em depósitos à vista dos seus clientes em um dia, e atendesse a agricultores com empréstimos de 200 no mesmo dia, ficaria com um déficit de 100. Só que no modelo em funcionamento, simultânea e automaticamente, tal diferença era suprida no BB pela conta-movimento. E de onde viria aquele dinheiro que supria a conta-movimento?
Do lançamento de títulos públicos no mercado financeiro. Esquema muito semelhante funcionava no caso de operações de fomento do Banco Central, segundo Maílson: “Em ambos, o valor do subsídio se perdia no opaco emaranhado de relações entre as três organizações”. O subsídio ocorria porque o empréstimo às empresas-cliente era feito com uma taxa de juros, no frigir dos ovos, menor do que a taxa de captação daquele recurso. Ou seja, a taxa paga pelo governo ao investidor que comprava os títulos públicos lançados no mercado (papéis que geravam os recursos para uso do BB e do BC). Traduzindo: o governo pagava 10 pelo dinheiro que ia para os bancos para ser emprestado a 5.
Era assim que o Banco do Brasil e o Banco Central se haviam transformado em poderosos canais de gastos públicos. O “disfarce” eram os empréstimos para os setores público e privado, realizados via orçamento monetário e, portanto, sem autorização legislativa. “O Brasil havia regredido aos tempos da Carta Magna inglesa de 1215”, qualifica o ex-ministro Maílson da Nóbrega. A outra distorção estava no endividamento público. No Brasil, ele crescia por autorização do Conselho Monetário Nacional (CMN), presidido pelo ministro da Fazenda. Praticamente em todo o mundo, o aumento da dívida pública se destina a financiar o déficit do orçamento, com despesas e receitas do governo aprovadas pelo Parlamento. No Brasil, destinava-se a financiar as atividades do BB e do BC.

Do fim da conta-movimento à criação do Siafi

A reforma


- Em 1985, começa o reordenamento financeiro governamental para a separação das contas e das funções do Banco Central, Banco do Brasil e Tesouro Nacional.
- Em fevereiro de 1987, foi extinta a conta-movimento do Banco do Brasil.
- Em seguida, foi criada a Secretaria do Tesouro Nacional que absorveria as funções de execução orçamentária, até então a cargo de um departamento do BB.
- Em junho de 1987, foram abolidas as atividades de fomento do Banco Central.
- Na mesma época, promoveu-se a unificação dos orçamentos que passam a ser inteiramente submetidos à aprovação do Congresso Nacional.
- O Legislativo também passa a ter poderes de decidir (antes do CMN), sobre a dívida pública.
- Foram extintos o orçamento monetário e todas as formas de orçamentação paralela.
- É criado o Siafi (Sistema Integrado de Administração Financeira do Tesouro Nacional) inteiramente informatizado e hoje referência internacional.

A evolução



- O Tesouro Nacional funciona atualmente com base em seus próprios recursos humanos com eficiência comparável aos melhores de seus similares no mundo desenvolvido.
- O BB, dipensado da conta-movimento, experimentou verdadeira revolução e foi colocado, ao longo do tempo, na liderança de muitos processos de transformação do mercado financeiro brasileiro.
- O Banco Central, livre da área de fomento, que não lhe dizia respeito, adquiriu feições de autoridade monetária moderna, focada na geração de uma moeda estável e um sistema financeiro sólido.
- No lado fiscal, o processo culminou na aprovação da Lei de Responsabilidade Fiscal, já mais tarde, no governo FHC.


Bancos estaduais se converteram em verdadeiras Casas da Moeda

“Inimaginável no contexto atual – o fato dá uma idéia de como os bancos estaduais tinham se convertido na prática em verdadeiras Casas da Moeda, sem maior controle por parte das autoridades federais”, diz texto do economista Fábio Giambiagi, em publicação do Ipea (Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada) sobre as duas últimas décadas de política fiscal no Brasil. O economista se refere aos bastidores que antecederam a reforma das finanças públicas no país, a partir de 1985, no governo da Nova República, iniciado pelo presidente José Sarney. Reforça a “magnitude” das transformações institucionais pelas quais passaram o setor público brasileiro nas últimas décadas, alegando que “a rigor, o processo teve início ainda nos anos 80”. Giambiagi transcreve trecho do capítulo 12 de livro de Maílson da Nóbrega onde se pode aferir “o grau de desordem das finaças públicas” no período. Confira a seguir o acontecimento relatado por Maílson – reproduzido na publicação do Ipea – como autoridade econômica que participou ativamente do momento:
“No início de 1983, aconteceu um fato gravíssimo. Alguns dos novos governadores eleitos perceberam que seus bancos estaduais podiam fazer saques a descoberto no Banco do Brasil, que era o depositário das reservas bancárias, à ordem do BC. O que levava mais de um mês para chegar ao conhecimento do BC, via balancetes mensais do BB. Não existia um sistema de informações gerenciais, nem serviços em tempo real. O primeiro deles foi o governador do Rio de Janeiro. Depois fizeram o mesmo os governadores de Goiás, Santa Catarina e Paraíba. O governador deste último estado, Wilson Braga, teve a gentileza de me avisar no dia do saque, em atenção ao fato de eu ser seu amigo e paraibano. Alertei-o para a gravidade do ato, mas ele retrucou afirmando que precisava pagar o funcionalismo e por isso já havia efetuado o saque.”

Fonte
“Dezessete anos de política fiscal no Brasil: 1991-2007” - Fábio Giambiagi, Rio de Janeiro, novembro de 2007, do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES) cedido ao Ipea. Capítulo 2, de “texto para discussão 1309” de “Uma periodização de duas décadas”.



Siafi é modelo internacional de controle e transparência das contas públicas

Criado há mais de duas décadas, no governo Sarney, o Sistema Integrado de Administração Financeira (Siafi) firmou-se como instrumento fundamental de controle e transparência das contas públicas, além de ser reconhecido no mundo inteiro e recomendado, inclusive, pelo Fundo Monetário Internacional. Por sua confiabilidade, desde 1987, quando foi implantada, a poderosa ferramenta tem sido cada vez mais utilizada pelo Legislativo, por Organizações Não-Governamentais (Ongs) e entidades privadas, como "Transparência Brasil" e "Contas Abertas". Assim, é referência constante em matérias da imprensa especializada e freqüentemente é tema de teses acadêmicas em torno da transparência pública.
Na verdade, o Siafi foi "apropriado" como principal instrumento de fiscalização de parlamentares e técnicos da Consultoria de Orçamento, da Câmara dos Deputados e do Senado, encarregados de promover o controle externo. Exemplo disso é a manutenção, por tais consultorias, de dados atualizados sobre a execução orçamentária da União, numa versão consolidada e simplificada dos dados extraídos do Siafi. Os balanços elaborados são disponibilizados nas páginas eletrônicas das respectivas casas, o que amplia a possibilidade de consultas.

O que é

O Siafi é um sistema informatizado concebido para registrar - praticamente em tempo real - acompanhar e controlar a execução orçamentária, financeira e patrimonial do governo federal. Implantado pela Secretaria do Tesouro Nacional em 1987 (a secretaria foi criada um ano antes na gestão Sarney), o sistema é, na prática, responsável pela organização contábil federal.
Inicialmente o acesso era restrito a alguns técnicos especializados em orçamento público, o que, no decorrer dos anos, foi consideravelmente ampliado. O sistema é centralizado em Brasília, ligado por teleprocessamento aos órgãos do governo federal distribuídos no país e no exterior. Essa ligação - que é feita pela rede de telecomunicações do Serpro (Serviço Federal de Processamento de Dados) e também pela conexão a outras inúmeras redes externas - é que garante o acesso ao sistema das quase 18 mil "Unidades Gestoras" ativas no Siafi. Tal eficiência gerou interesse dos estados e municípios por instrumento semelhante. Assim foi criado o Siafem, Sistema Integrado de Administração Financeira para Estados e Municípios.

A origem

Até o exercício de 1986, o governo federal convivia com uma série de problemas de natureza administrativa que dificultava a adequada gestão dos recursos públicos e a preparação do orçamento unificado, que vigoraria em 1987, como por exemplo:
  • Controles contábeis rudimentares, exercidos sobre registros manuais;
  • Falta de informação gerencial em todos os níveis da administração pública e inconsistência de dados, baseados em diferentes padrões;
  • Defasagem das informações disponíveis em pelo menos 45 dias, inviabilizando seu uso gerencial;
  • Existência de inúmeras contas bancárias – uma para cada despesa, em cada unidade - no âmbito do governo federal. Por exemplo: conta bancária para material permanente, conta para pessoal, para material de consumo, e assim por diante. Eram em torno de 12.000 contas bancárias e se registravam, em média, 33.000 documentos diariamente.
  • Inexistência de mecanismos para evitar desvio de recursos públicos e identificação de maus gestores;
  • Despreparo técnico de parte do funcionalismo.
Foi um enorme desafio à época. O primeiro passo foi criação da Secretaria do Tesouro Nacional (STN), em março de 1986, para auxiliar o Ministro da Fazenda, Dílson Funaro, na execução do orçamento unificado. A STN, por sua vez, identificou a necessidade de informações que permitissem aos gestores agilizar o processo decisório. Nasceu então o Siafi. O governo federal passou a contar com uma Conta Única para gerir a origem de todas as saídas de recursos, o registro de sua aplicação e a identificação do servidor público que a efetuou. Nenhuma receita ou despesa, de órgãos da administração direta e indireta, e independente do valor, é efetuada sem registro no sistema, diária e simultaneamente.
Isso torna possível o acompanhamento real da execução do orçamento brasileiro. Parlamentares brasileiros contam com a possibilidade de eventuais intervenções, no momento de identificação de erros, irregularidades, ou de suspeita de irregularidades no uso de dinheiro público. Na ausência do Siafi, dependeriam de balancetes trimestrais que, pela Lei de Responsabilidade Fiscal, devem ser publicados no Diário Oficial da União.

Função social

O ex-ministro da Fazenda, atualmente senador Francisco Dornelles (PP-RJ), reforça o valor do sistema: "Considero da maior importância todo instrumento que garanta informações ao cidadão. A transparência é fundamental para o Estado democrático, no acompanhamento dos gastos públicos". De sua parte, o também ex-ministro da Fazenda, Maílson da Nóbrega, cita o Siafi, ao referir-se ao esforço de modernização institucional das finanças públicas federais, empreendido pelo governo Sarney: "... um conjunto de medidas puseram fim ao primitivismo institucional das finanças públicas. Nasceu nesse período o Siafi, inteiramente informatizado, o qual tem servido de paradigma para implementação de mecanismos semelhantes em outras partes do mundo".
O atual deputado federal Augusto Carvalho (PPS-DF) tem entre suas principais vocações a fiscalização da aplicação dos recursos públicos. Fundador e primeiro presidente do "Contas Abertas" (que disponibiliza dados orçamentários por meio de sua página eletrônica na Internet) já destacava a importância do Siafi, desde seu mandato de deputado distrital: “O Brasil pode se orgulhar de dispor de uma das ferramentas mais modernas e eficientes de administração pública, que existe em poucos lugares do mundo. É um excelente banco de dados desenvolvido pelo Serpro e cumpre com sua função social de tornar o governo acessível ao cidadão. Além disso, contribui para que os parlamentares exerçam o papel, que lhes é conferido pelo voto representativo, de fiscalizar as políticas do governo”.

Fontes de Informação

Portal do Siafi (http://www.tesouro.fazenda.gov.br/Siafi/;"A Herança Econômica", de Maílson da Nóbrega, economista, consultor de empresas, último ministro da Fazenda do governo Sarney; "A função controle exercida pelo Parlamento: o papel do Siafi", de Maria Amélia da Silva Castro;"Controle Público e orçamento federal: avaliando o papel do Siafi", de Ana Paola de Morais Amorim Valente e Lígia Maria Moreira Dumont




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