Neste ano, meu artigo de sexta-feira da Paixão corresponde aos 400 anos do nascimento do Padre Antonio Vieira, a quem Fernando Pessoa chamou de Imperador da língua portuguesa. Vieira sobreviveu quatro séculos e continuará vivo porque não foi somente o pregador, o divulgador da fé, o evangelizador dos índios e o inconformado com todos os tipos de escravidão humana. Foi um humanista e um grande escritor. E como escritor vive na eternidade de grande pensador. Fazem parte dos seus grandes sermões os quaresmais. Ele não se continha no relembrar os fatos litúrgicos da Paixão, os episódios que levaram à Crucificação, mas enfrentava os sentimentos maiores contidos na visão cristã da morte pelos homens do Filho de Deus. Tomemos por exemplo o Sermão da Primeira Sexta-Feira da Quaresma de 1644. Não é um convite ao recolhimento, é a proposta de meditar sobre um tema difícil e sempre dentro de nós: amor e ódio. O mais difícil de todos os ensinamentos de Cristo que é aquele que manda “amar vossos inimigos” (Diligite inimicos vestros. Mt.5). Esse preceito é “o mais rigoroso da lei evangélica”, sustentavam Santo Agostinho e São Jerônimo. “Repugnante à natureza humana”, e sobre esta natureza devia ser a meditação de todo o tempo dos quarenta dias da Quaresma, que comparava aos quarenta dias do dilúvio. “Neste chovia água, naquele misericórdia.” A chave de cumprir aquele princípio está em Sêneca: “Se queres ser amado, ama” (Si vis amari, ama). A Quaresma para Vieira é tempo de “desenganos”, em que se tem o exemplo do “destino da existência humana”. Começa com cinzas, a lembrar que somos pó e ao pó retornaremos, em seguida vem o sacrifício de jejum, a cobertura dos altares para que nem os santos vejam esta “semana penosa”, na expressão de São Bernardo, mas a Semana Maior do calendário da Igreja. E nos propõe meditar sobre “quem padece, o que padece, por quem padece”. Com Alçada Batista, grande escritor português, numa Semana Santa em Lisboa, discutíamos sobre a fé, o difícil espaço da religiões nos dias atuais, e ele me resumiu todo o simbolismo da Sexta Feira da Paixão: “Só há uma maneira de afastarmos todas as dúvidas: é saber que ela traz um mistério e os mistérios não são revelados. Acreditar sem indagações.” Eu acrescentaria a chave de nossa fé, que seria vã, na expressão de São Paulo, se não fosse a ressurreição. “Sem ressurreição não há cristianismo.” E aqui vai o meu sermão com o mesmo Deus da minha infância, da minha juventude, da minha maturidade, da minha velhice, que um dia me cobrará: “José, onde estão tuas mãos que eu enchi de estrelas?”
* José Sarney é ex-Presidente da República, senador pelo Amapá e acadêmico da Academia Brasileira de Letras e da Academia de Ciências de Lisboa.
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