No dia 7 de agosto de 1984, Tancredo Neves era
escolhido candidato da Aliança Democrática à Presidência da República.
Começaria ali o último ato do fim da ditadura. Porém, como enfatizou Tancredo,
não se tratava de uma tarefa meramente negativa - a de enterrar um regime que
infelicitava o país. Era, na concepção do candidato, necessário um programa de
reconstrução do país. Este foi o conteúdo de seu discurso, na tarde daquele
dia, ao aceitar a candidatura. Os que estiveram presentes, jamais esquecerão as
suas palavras. Devido à sua atualidade - Tancredo, infelizmente, não
conseguiria implementar seu programa, devido aos trágicos acontecimentos na
madrugada de sua posse - publicamos hoje uma condensação daquele
pronunciamento, que não parece ter 29 anos de idade. O leitor que interessar-se
por sua íntegra - assim como dos principais pronunciamentos de Tancredo - pode
encontrar, na Biblioteca Digital da Câmara, o volume "Tancredo
Neves", da série Perfis Parlamentares. Na página 739 poderá encontrar o
discurso que hoje resumimos.
Tancredo Neves
Companheiros:
A causa do povo, se dispensa radicalismos, exige
coragem. Foi essa coragem, assumida por todos nós, e sobretudo pela gente mais
simples do povo, que nos deu ânimo na penosa travessia. Levamos, para as jornadas
próximas, a força que nos conferem a confiança e o entusiasmo do País. Temos de
compreender a verdade essencial de nosso pacto político. Nós o estabelecemos em
favor de nossa gente. O Brasil que amamos não é entidade abstrata, feita apenas
de símbolos, por mais que os veneremos. O Brasil que amamos está em cada
coração e em cada alma de seus filhos. Restaurar, em seus olhos, o orgulho da
Pátria, é a missão que nos cabe. A soberania do País é a soberania de seu povo;
a dignidade do País é a dignidade de sua gente.
Companheiros:
Cabe-nos enfrentar, com coragem e urgência, os
problemas de natureza institucional. Os homens necessitam de pactos definidos
para a sua convivência. Devem sempre existir, entre eles, regras claras, que
lhes estabeleçam os limites entre os direitos individuais e os direitos
comunitários. Tais direitos, sendo mútuos, se fazem de concessões. O Estado
terá de ser a linha possível entre os interesses de cada homem e os interesses
de todos os homens juntos. O Estado é a sua Constituição. Sem Constituição, não
há Estado, mas precário arranjo entre os interesses e a força. As
Constituições, no entanto, não são obras literárias, nem documentos
filosóficos. Elas não surgem do espírito criador de um homem só, por mais
privilegiado em sabedoria seja esse homem. Tampouco podem ser a codificação de
propósitos de um ou outro grupo que exerça influência, legítima ou ilegítima,
sobre a Nação. A vida das Constituições está no espírito com que são
concebidas. Quanto mais estejam subordinadas aos efêmeros interesses das
minorias, ou quanto mais atendam à voracidade de poder dos tiranos, menos podem
durar. A verdade social é, assim, a essência de tais documentos. Recuperar a
Federação é a nossa segunda grande tarefa institucional. Não basta declarar a
Federação. É preciso que o governo da União abandone os excessivos poderes que
se arrogou, a começar pelo de concentração tributária e distribuição política
dos recursos fiscais. Não pode a União dispor de mais do que necessita para
responder a seus encargos, limitados pela Constituição. O que temos assistido é
a ânsia incontrolável de domínio burocrático e de captação de recursos para
financiar exacerbado controle da vida econômica e social do País. A recuperação
do sistema federativo, imposição da necessidade administrativa, por si só será
grande vitória da razão sobre o arbítrio.
Companheiros:
É urgente a necessidade de impor-se ordem econômica
ao Estado. As contas brasileiras, internas e externas, tornaram-se pesadelo
angustiante. Comecemos pela dívida externa. Os países credores serviram-se de
nossos sonhos de grandeza, e, com os recursos que nos forneceram, ampliaram as
restrições ao nosso desenvolvimento econômico. A flutuação da taxa de juros,
expediente de que se valem a fim de fazer frente a seus déficits orçamentários,
está levando o nosso povo a penosos sacrifícios. Já exaustos, os trabalhadores
se esfalfam para produzir bens que se convertam em divisas, a fim de atender à
ambição insaciável do sistema financeiro internacional. A recessão e o
desemprego não são moedas de ajuste entre povos dignos. Não é possível que o
País continue enviando para o exterior 5% da renda interna sob forma de
pagamento de juros, outros serviços e amortizações. Tal saída de recursos
corresponde a verdadeira sangria na economia nacional e se materializa, em
última instância, pela transferência de parcela da produção nacional ao
exterior. Os produtos, por seu turno, correspondem à combinação de recursos
naturais, mão de obra e capitais nacionais carreados para fora do País. A
posição brasileira deve ser de honrar a dívida, mas há condições a serem
analisadas, discutidas e renegociadas, para que o País não comprometa mais do
que parte razoável de suas receitas de exportações nos pagamentos ao exterior. Urge
eliminar o gargalo imposto pela necessidade crescente de geração de superávits
comerciais para pagar os serviços da dívida, e sua própria amortização, para
que o País obtenha a folga necessária para voltar a crescer. Mais danosa do que
os gravames que nos impõem é a bruta injustiça nas relações de intercâmbio
entre os países do hemisfério norte e os que se situam ao sul. A colonização
política, que tanto custou aos povos, foi substituída pelos ardis do comércio
externo e das relações financeiras. A execução do nosso programa de governo não
pode dispensar o respaldo de uma política externa voltada para os interesses
nacionais, refletindo os anseios de uma sociedade democrática. Procuraremos
ampliar relações com todos os nossos parceiros, independentemente do nível de
desenvolvimento de cada um. Em todos os aspectos desse relacionamento, o Brasil
há de ser sempre um parceiro confiável, cuja posição internacional não estará à
mercê de infortúnios conjunturais, mas lastreada na sua riqueza, na seriedade
de propósitos de seu governo e na confiança do povo quanto à sua capacidade de
realizar-se como Nação próspera, justa e independente. Em nossas relações
comerciais, financeiras ou tecnológicas, os interesses de médio e longo prazo
do Brasil nos impedem abdicar do pleno desenvolvimento de nossas
potencialidades, sobretudo naqueles setores estratégicos capazes de nos
assegurar, em futuro próximo, um lugar definitivo entre os países que acionam as
alavancas do progresso para o bem-estar de sua gente. Em consequência, só
assumiremos os compromissos internacionais que possamos cumprir. Não
aceitaremos imposições que se valham de nossa situação de vulnerabilidade
momentânea. Em suma, não negociaremos o inegociável, nem dialogaremos sob
pressão. Com os países desenvolvidos cultivaremos relações de cooperação que
esperamos sejam crescentemente proveitosas, em termos que atendam a nossos
interesses. Encontramo-nos, no campo financeiro, na posição de devedor de
vários desses países, mas, nos campos do comércio, da tecnologia e dos
serviços, somos e seremos cada vez mais seus acirrados competidores. Com os
países em desenvolvimento, deveremos também expandir a cooperação econômica e
técnica, já existente em grau significativo. Impõe-se que a solidariedade em
que se baseiam essas relações se traduza em efetivo aproveitamento de vantagens
recíprocas. Junto com os demais países latino-americanos, trataremos de atingir
os objetivos de integração regional mutuamente acordados. É da tradição
brasileira contribuir para o aprimoramento do convívio e da cooperação entre as
nações. Na quadra difícil que atravessamos, estou convencido de que nossa
contribuição deve incluir uma participação ativa no processo de reformulação
das instituições que, desde o fim dos anos 40, vêm regulando as relações
econômicas internacionais. Incapazes de lidar eficazmente com os problemas da
atualidade financeira e comercial, assimétricas no que se refere aos direitos e
obrigações de países ricos e pobres, insensíveis aos imperativos do
desenvolvimento econômico e social da grande maioria de seus países membros,
essas instituições frequentemente mais acentuam do que corrigem os
desequilíbrios existentes. Devemos valer-nos da experiência brasileira com tais
instituições para apontar com clareza os caminhos de sua reformulação. Ainda
nas relações externas, sem o apelo histérico à xenofobia, preservaremos os
valores culturais que nos identificam como singular civilização entre os
trópicos. Temos de assumir, com justificada soberba, a grande herança que
trazemos das populações autóctones e das duas margens do Mediterrâneo. Essa
marca, ameríndia, latina, ibérica e africana, predomina em nossa forma de ser
no mundo, e de sentir o mundo. Os outros povos que para aqui vieram souberam
integrar-se em nosso meio, e enriquecer a cultura nacional. Há, no entanto, de
se proteger o patrimônio espiritual de nosso povo contra aquele tipo de
subcultura que nos impingem de fora. A identidade de um país está também na sua
natureza. O progresso, indispensável, terá de ser conquistado com o respeito
pelo ambiente natural. A vida é o bem absoluto dos homens. Não pode haver vida
em um ambiente assassinado pela cupidez de alguns. Quando falamos em identidade
nacional, há de se pensar na juventude brasileira. São moças e rapazes que
trabalham e estudam, com enormes dificuldades, e não dispõem de tempo para a
vida descuidada dos poucos privilegiados. Desses rapazes e moças poucos chegam
à universidade. A universidade, no Brasil, é ainda elitista. Temos de
democratizá-la efetivamente, e não continuar com a mentalidade de que os filhos
dos trabalhadores devam ser sempre trabalhadores, e doutores os filhos de
doutores. Perdida em divagações, formando profissionais para um país inexistente,
a universidade brasileira necessita de uma reforma profunda e imediata. Mas há
toda uma juventude, toda uma infância que nos cumpre salvar com urgência. São
os milhões de crianças e adolescentes abandonados de nosso País. Concentrados,
em sua maioria imensa, nas grandes metrópoles, eles não têm lar, nem futuro.
São nômades nas ruas, obrigados a recolher delas, e de qualquer maneira, o pão
de cada dia.
Companheiros:
A modernização da agricultura, que engoliu os
pequenos produtores em benefício dos vastos plantios para exportação, expeliu
do campo, para as cidades médias e maiores, numerosos contingentes humanos. São
eles os banidos em sua própria Pátria, desgarrados da paisagem ocupada por
várias gerações familiares, e compelidos a vender sua força de trabalho, quando
encontram quem a compre, a preços aviltantes. No interior do País, são eles os
boias-frias, designação que, em sua vulgaridade, espelha toda a humilhação a
que são submetidos. Nas grandes cidades são esmagados pela recessão econômica, e
assistem, sem poder reagir, à desagregação da família, que é o único bem dos
pobres. Onde não há trabalho, não há pão, e as migalhas acaso obtidas, Deus
sabe como, são sempre molhadas com as lágrimas da vergonha. Não podemos sentir
orgulho de cidadãos, enquanto houver, neste País, tanto sofrimento e tanto
ultraje. Temos de transformar, e logo, as declarações gerais em favor da
justiça social em atos concretos. Isso exige toda uma nova concepção do
objetivo social da economia. Temos de começar pela base, pela terra, que é a
única geradora primária de riquezas. Não postulo medidas radicais e novas para
a solução do problema agrário do Brasil. Vamos empenhar-nos em executar a
legislação que aí está, proclamada e não cumprida. Para os anos próximos, a
aplicação do Estatuto da Terra, por si só, corresponderá a uma revolução no
campo. A democratização da propriedade rural facilitará a desconcentração
industrial e o fim do êxodo rumo às imensas metrópoles, que já se tornam inabitáveis.
O problema da agricultura não é apenas o da posse da terra. É preciso vê-lo em
toda sua complexidade, que envolve questões como as de crédito, dos subsídios,
da tecnologia, dos insumos. Não há país no mundo que negue subsídios aos
produtores rurais. A atividade, apesar de toda a técnica moderna, continua
sendo a mais arriscada do ponto de vista econômico. Não há país que prospere
com segurança, se não contar com uma agricultura poderosa. Por isso mesmo,
teremos de encontrar o equilíbrio entre a questão social, que recomenda a
disseminação de pequena propriedade rural, e as razões econômicas. Muitas
reformas agrárias fracassaram porque não foram capazes de garantir o
abastecimento urbano. A agricultura tem de produzir para o consumo interno e para
a exportação. Temos tudo, no Brasil, para uma agricultura pujante. Mas
recusamos o destino, que alguns nos querem indicar, de meros fornecedores de
comida barata ao mundo. A força da terra e o trabalho dos homens serão
alicerces para a construção de um País industrialmente desenvolvido e
politicamente respeitado.
Companheiros:
Todas essas medidas só serão possíveis com a
preservação e fortalecimento da empresa nacional e incentivos aos pequenos e
médios empreendedores. Fortalecer a empresa nacional é dar-lhe condições para
desenvolver seu modo de produção, com uma política racional de crédito e
incentivos fiscais, e, também, dentro de uma tecnologia que seja nossa. Em
razão disso, defendemos a reserva de mercado para, entre outros, o
importantíssimo setor da informática. Mas não nos esqueçamos de que o mercado
não é uma entidade abstrata e nem pode ser reduzido apenas a dados
estatísticos. Ele é constituído de criaturas humanas, soberanas no seu direito
de escolha, e é a essas criaturas que devemos defender. Investir na pesquisa
científica é outra de nossas urgências. Não admitimos quaisquer vetos aos
trabalhos dos cientistas brasileiros, que devem buscar o domínio do
conhecimento em todos os campos. Temos, entre esses investigadores, nomes de
projeção universal. Falta-nos, porém, uma política decidida de estímulo a seu
trabalho. Vivemos internamente sob insólito sistema econômico, que, para usar
uma expressão que se tornou corrente, privatiza os lucros, mas socializa os
prejuízos. Os dinheiros públicos são generosamente entregues a especuladores
que, até mesmo na manipulação financeira, se mostram incompetentes. As empresas
estatais, que constituem, em alguns setores, irretorquível necessidade,
reclamam controle social maior. Mas é preciso cuidado nas críticas que a elas
se fazem. Não podemos, em nome da privatização das empresas estatais, promover
a desnacionalização da economia brasileira.
Companheiros:
Não há economia forte com sindicatos fracos. A
autonomia sindical é imprescindível à construção democrática do País. Os
sindicatos, quando no exercício de suas atividades legais, existem como
legítimo instrumento dos trabalhadores, e sem eles não há paz social.
Companheiros:
Em nossos tempos assistimos à emancipação social e
política das mulheres. Esse é um movimento justo e irreversível. Como todas as
revoluções, também esta se faz com dificuldades. A mulher brasileira não se
está emancipando porque pretenda libertar-se do lar. Ela vem sendo empurrada às
atividades produtivas, fora de casa, pelas exigências da vida moderna. Sem o
seu salário, hoje, é difícil a sobrevivência das famílias de trabalhadores. A
mulher só será realmente emancipada quando tiver as mesmas oportunidades
políticas dos homens. Elas devem participar das decisões nacionais e da
administração pública, com sua inteligência e seus discernimentos políticos em
plena igualdade, e sua presença não pode ser vista como acontecimento insólito.
Companheiros:
Estamos convencidos de que o Brasil só será a
grande Nação que sua gente merece quando não houver zonas de depressão social e
econômica na geografia do País. A integração do Nordeste no conjunto nacional
não é medida paternalista a ser assumida com os recursos do Sul. É providência
reclamada para a prosperidade comum do Brasil. Necessitamos, todos nós, de dar
aos nordestinos a oportunidade do desenvolvimento. As distorções históricas da
economia nacional, resultantes da diferença de clima, mas também de injunções
políticas, agravaram-se, nas duas décadas passadas, com a concentração de
recursos pelo Poder Central. Já temos dito e repetido: o Nordeste é a primeira,
a maior e a mais importante das prioridades nacionais.
Companheiros:
Haveremos de encontrar, com a assessoria dos
grandes mestres da teoria econômica e os conselhos da razão política, os meios
para sanear a moeda e recuperar a confiança nas atividades produtivas. O que
não podemos permitir é a continuação dessa drenagem enlouquecida de recursos
para a aplicação em títulos que, por sua vez, não se destinam a investimentos
produtivos, mas à especulação insensata de um monetarismo hipertrofiado. Só os
néscios, porém, podem acreditar no êxito de uma política recessiva no combate à
inflação. A ação deflacionária exige a colaboração ativa da sociedade, e a
sociedade não lhe dará seu assentimento se não houver rápida criação de novos
empregos, favorecimento às iniciativas de trabalho e produção próprias, e o
atendimento às necessidades básicas do povo.
Companheiros:
O povo brasileiro reclama mudanças, e iremos
promovê-las. Não faremos apenas um governo de transição. Nosso propósito é o de
presidir ao grande acordo nacional para a transformação do Brasil em um País
restaurado em sua honra, em sua riqueza e em sua dignidade. Sabemos como serão
penosas as jornadas por vir. Durante muitos anos as dificuldades puderam ser
proteladas com manobras e manipulações contábeis. Agora não há mais recursos
para o adiamento. Chegou a hora da verdade, assustadora verdade, e teremos de
enfrentar todas as dificuldades com coragem e determinação.
Para isso temos de buscar, no sacrifício do nosso
povo, o indispensável exemplo de amor à Pátria. São estes homens e mulheres
que, na lida do campo, no interior das fábricas, nas estradas, nas cátedras e
nos quartéis, são os verdadeiros construtores da nacionalidade. O nosso pacto
social, assim, afasta desânimos e ressentimentos, covardias e represálias,
acomodações e revanchismos, para abrir o País a uma nova estação da História. Não
será um tempo de milagres, nem de ostentação constrangedora. Tudo faremos para
que os brasileiros tenham direito ao trabalho, à honra e à liberdade. Para esta
luta, em nome da Aliança Democrática, conto com a ajuda de Deus e a força do
povo.
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