O elogio ao liberalismo feito na noite de terça-feira (3) pelo filósofo Helton Adverse trouxe calor ideológico aos debates do Fórum Senado Brasil 2012, que será encerrado no dia 7 de agosto. Mesmo condenando a desregulação que levou à crise financeira de 2008, o conferencista foi questionado por vários participantes sobre a veracidade do termo ‘democracia’ num quadro de “gritante injustiça social”. No entender de Adverse, o liberalismo segue com muita força, mesmo porque não há no horizonte alternativa consistente a esse modelo político e econômico. O socialismo seria essencialmente antidemocrático, pelo menos se levada em conta a sua experiência histórica, pontuada pela supressão da liberdade política em prol de metas de nivelamento econômico. Muitos governos intervencionistas estabelecidos na América Latina nos últimos anos teriam a mesma inspiração, e, portanto, caminhariam no sentido contrário à democracia:
- Já na democracia liberal, mesmo nas crises, as diferenças são resguardadas sem ameaças à estrutura política – observou Adverse, que é professor da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG).
O filósofo, entretanto, pregou a ideia de que há um ponto máximo de exclusão social, que põe em xeque o próprio sistema liberal, e um ponto mínimo, a partir do qual a democracia começa a ceder em função do cerceamento ao mercado. O ideal é que haja um equilíbrio.
- A crise de 2008 nos fez lembrar que existe política e que a espontaneidade do mercado tem que ser vista com reservas. É preciso deliberar – assinalou o conferencista, um crítico da ideia de que o liberalismo acabou.
Tecnocracia
Para ele, a democracia liberal ainda tem muito a contribuir para o desenvolvimento econômico e social. Os problemas graves que países como o Brasil, e eventualmente os desenvolvidos, enfrentam, decorreriam exatamente da fragilidade no exercício da política. Ou seja, as mazelas sociais seriam resultado da pequena participação política dentro do modelo liberal, não de uma recusa doutrinária do sistema à ampliação de renda e oportunidades. Esse raciocínio se aplicaria, por exemplo, ao poder de instituições como o Comitê de Política Monetária (Copom), que define o patamar de juros no Brasil, e estaria “acima da vontade popular”, na opinião de um participante. Adverse acrescentou que há uma tendência nas últimas décadas à despolitização das decisões e sua conversão em medidas técnicas e administrativas, o que se expressaria inclusive no predomínio da linguagem econômica.
Questionamentos às virtudes do liberalismo partiram também do embaixador Samuel Pinheiro Guimarães, que renunciou no dia 28 de junho ao cargo de alto-representante geral do Mercosul.
- O exercício da democracia no Brasil é afetado, sim, pela desigualdade de renda, que cresce sob uma cortina de fumaça, e pela desigualdade política – disse o diplomata depois ser incentivado a falar pelo coordenador do evento, embaixador Jerônimo Moscardo.
Para Guimarães, a composição do Congresso Nacional deixa evidente a concentração de terras no Brasil. O que chamou de “bancada ruralista” integraria cerca de 300 parlamentares contra 30 ou 40 representantes dos trabalhadores rurais.
- O que temos no Brasil é uma plutocracia – afirmou o diplomata, referindo-se ao termo criado por Aristóteles para designar o ‘governo dos ricos’.
As críticas ao liberalismo seriam retomadas pelo advogado trabalhista e ex-suplente de senador Ulisses Riedel, atualmente à frente da fundação União Planetária:
- A liberdade entre desiguais é falsa. Falta o ingrediente da solidariedade, sem o qual a liberdade não é ética – salientou o advogado, que se colocou como crítico de uma sociedade competitiva a ponto de permitir a transmissão de lutas de vale-tudo (UFC) pela TV até nas noites de Natal.
‘Governamentalidade’
Na primeira parte da palestra, Helton Adverse discorreu sobre a interface entre o liberalismo e o Estado, do ponto de vista dos estudos do filósofo francês Michel Focault sobre a ‘governamentalidade’, conceito que engloba as relações de poder dentro da democracia liberal. O professor da UFMG procurou mostrar que o liberalismo surgiu como uma reação às “razões de estado” presentes no século XVI, e se desenvolveu a partir do século XVII tendo em vista sempre o maior grau de liberdade possível, mas nunca prescindindo da proteção estatal, ao passo que o Estado lançava mão de todos os meios que lhe seriam convenientes para atingir seus fins.
- O liberalismo coloca em xeque esse excesso de poder – aponta Adverse, que chama a atenção para o nascimento da economia política no século XVIII e o aprofundamento de uma lógica própria do mercado: a independência do poder político.
No discurso liberal, segundo ele, o mercado funciona como critério de verificação da validade da ação política. A própria ideia de liberdade é formulada a partir de uma noção de mercado
– Se a liberdade é anterior à política, cabe ao Estado, como função primordial, garantir a liberdade. Quando examinamos de perto, ocorre o contrário: a liberdade é decorrente da política, e a tarefa do poder político será a de produzir a liberdade através de intervenção no mercado e no aparato jurídico – analisa o filósofo.
Conflitos
Ele salienta que a noção de liberdade parece uma oposição ao poder, mas no contexto do liberalismo funciona de modo contrário: “é a liberdade que permite o exercício do poder”. Na linha do filósofo Michel Foucault, Adverse alerta que a liberdade não é um dado universal, com realização progressiva e “manchas” ocasionais, mas uma relação efetiva entre governantes e governados.
- A democracia recusaria qualquer instrumentalização. Não é um meio, mas um fim nela mesma, assim como a própria ação política – argumentou.
Por isso, a democracia não pode ser confundida com harmonia, segundo o conferencista, pois a democracia abriga os conflitos.
- A liberdade política está sempre nessa região entre a liberdade absoluta e a supressão absoluta dessa liberdade - concluiu.
Agência Senado
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