O auditório do Interlegis abriu espaço na noite de sexta-feira (30) a uma das vozes mais críticas do Parlamento na atualidade: o professor de Filosofia da Universidade de São Paulo (US) Vladimir Safatle vê a atuação dos partidos como impedimento a uma participação dinâmica e genuína do povo na política, e é otimista quanto à emergência de mecanismos de democracia direta. Oitavo conferencista do Fórum Senado Brasil 2012, o filósofo não apresentou fórmulas, mas acha que no mínimo os atuais partidos deveriam ser substituídos por “frentes”. As novas agremiações teriam de se apresentar como veículos legítimos e pulsantes de um amplo leque de anseios que não podem esperar por acordos entre estruturas partidárias já sem comunicação real e identidade com o eleitor. Desse rol de organizações ultrapassadas, ele não exclui nem partidos de esquerda, que, a seu ver, de forma fatalista, têm colaborado em muitos países com programas de ajuste danosos à população e benéficos a financistas e governantes.
- A forma partido não tem mais função – sentenciou por duas vezes, valendo-se de um conceito da arquitetura, segundo o qual, num edifício ou equipamento, ao aspecto estrutural e estético deve sempre corresponder a utilidade.
Se os partidos, ou seus eventuais substitutos, precisam ser porosos aos interesses e demandas do povo, as possibilidades de participação política direta devem ser mais bem exploradas, sobretudo agora que a tecnologia da informação propicia conexões ágeis e seguras. Ele considera insuficiente a existência de canais como o da apresentação de projetos de lei por grupos de eleitores, como o previsto na Constituição brasileira e que acabou resultando na Lei da Ficha Limpa.
Indignados
Para exemplificar o que entende por mudança de verdade no cenário político o professor da USP citou movimentos como o dos indignados na Espanha e o Occcupy Wall Street nos Estados Unidos. Também elogiou a Primavera Árabe e os protestos anti-corrupção no Brasil. Safatle contesta os que buscam qualificar esses grupos como despolitizados e vazios em termos de propostas.
- Acho muito inteligente da parte deles o fato de quererem discutir. E não é verdade que não têm uma pauta, só não querem se submeter ao velho jogo partidário, onde os participantes dizem ou deixam de dizer algo por conveniência – adverte o professor da USP.
A questão, segundo Safatle, é que a pauta dos indignados e “ocupadores” não é convencional, justamente por bater de frente com os interesses, explícitos e ocultos, que há muito dominam a política.
No Chile, por exemplo, os rebeldes rejeitam terminantemente a ideia de que, com ou sem crise, há uma justificativa para se retirar recursos da educação. Na Espanha, os manifestantes duvidam que os políticos não soubessem ou não tivessem parte na crise financeira que ampliou o desemprego.
Questões como a da dívida da Grécia, na opinião do filósofo, deveriam passar pelo poder decisório da democracia direta, e não serem decididas por um conjunto de tecnocratas ou parlamentares possivelmente comprometidos com os financiadores de suas campanhas. Na Islândia, recordou, a população em plebiscito decidiu pelo calote da dívida pública.
- O direito fundamental de todo cidadão, mesmo em estados liberais, é o direito à rebelião. A insubmissão é uma virtude, não um defeito – afirmou.
“Assembleísmo”
Para Safatle, é falso pensar que a democracia se realiza naturalmente, por intermédio de parlamentares. Ele afastou as acusações de que o “assembleísmo” tornaria inviável a tomada de decisões. E apoiou esse raciocínio no que considera uma evidência: os parlamentos podem se comportar de forma imobilista, ao levar anos para deliberar sobre matérias que demandam solução urgente.
- Não é possível que a democracia tenha medo da complexidade, e que sejamos presas do pensamento covarde – provocou.
No caso brasileiro, Safatle classificou como catastróficos os últimos 20 anos, destacando que a matriz dos escândalos tem sido a mesma há décadas, o que atribuiu à suscetibilidade da estrutura política a interesses financeiros. Mesmo soluções interessantes como o orçamento participativo, jamais foram testadas no plano federal, e acabaram por sucumbir na esfera municipal.
Segundo Safatle, a esquerda emerge de uma profunda autocrítica, a ponto de questionar o regime ditatorial cubano, e vive um novo momento, mas o foco de grande parte das demandas passou para o reconhecimento de direitos – o que não pode ser o cerne de todas as lutas políticas.
De toda maneira, o filósofo prevê um “processo lento e difícil, mas necessário” no caminho de novas práticas e novas instituições. E condenou a dissociação entre direito e justiça. Safatle considera preconceituosa a visão de que, fora do Estado de Direito, só se enxerga o criminoso ou o legislador, este propenso a suspender certos dispositivos legais ou até recorrer a ilegalidades em tempos de crise ou de guerra.
Caos
Para se contrapor a essa visão que considera conservadora, o professor da USP, representante de uma corrente de pensamento que pretende revigorar a ideia de uma esquerda viável, prescreve a ação sistemática de questionamento dos governos e do sistema político estabelecido. E nem sempre em acordo com o que é considerado legal.
- É preciso observar que a maior parte das maneiras legais de agir foram estabelecidas para que nada mude – ponderou, para, em seguida, lembrar aos menos experientes das consequências a que estão expostos os que decidem agir assim:
- É preciso sempre calcular o risco da reação violenta.
Tanto no conselho quanto na ponderação afloram mais que a visão de um ativista que leva em conta as notícias sobre as recentes ocupações de praças públicas. A vivência do professor no limite dramático da contestação vem desde o primeiro ano de vida. Nascido no Chile em 1973, ano da deposição do presidente comunista Salvador Allende (1908-1973) e da ascensão do general Augusto Pinochet (1915-2006), Safatle voltou com os pais para o Brasil e seguiu uma trajetória de estudos de filosofia, arte e comunicação que se estenderam até a França.
O conhecimento acumulado nesse período tem servido de sustentação a um pensamento que se quer nitidamente de esquerda, como fica ainda mais claro pelo título de um dos livros à venda no hall do Interlegis: A esquerda que não teme dizer seu nome.
O livro é dedicado ao pai, Fernando Safatle, por ter lhe dado “um nome”, mas não um nome qualquer, e sim o mesmo de Lenin, líder da Revolução Russa de 1917. Também é dedicado ao neto do general chileno Carlos Prats, Francisco Cuadrado, que cuspiu no caixão de Pinochet.
Revolucionário de cavanhaque, como Lenin, Vladimir Safatle, vê na Revolução Francesa uma série de referências importantes para o estabelecimento da soberania popular. Quando lhe perguntam se, a despeito do legado de igualdade, liberdade e fraternidade, a memória do caos, e também do terror, não tem funcionado no imaginário do Ocidente como um alerta para o perigo de revoluções prolongadas, o filósofo responde citando o pensador alemão Theodor Adorno:
- Na política, como na música, a ideia de caos é superestimada.
O Fórum Senado Brasil prossegue até 7 de agosto, sempre às 18h30. Nesta segunda-feira (2), Fréderic Gros falará sobre as ciberdemocracias. O seminário é coordenado pelo embaixador Jerônimo Moscardo, especialmente designado para o projeto pelo presidente do Senado, José Sarney.
Agência Senado
Matérias relacionadas
Nenhum comentário:
Postar um comentário