São 35 anos de Senado e
quatro passagens pela Presidência da Casa. Com a experiência de quem viveu
momentos importantes da história brasileira, o senador José Sarney (PMDB-AP)
diz que não se prende com saudosismo ao passado. Em vez disso, prefere olhar
para o futuro. Um futuro que, em sua opinião, terá o Brasil como protagonista
no cenário político-econômico mundial.
- Hoje somos a sexta
economia mundial e realmente nossa marcha será para uma posição entre os mais
desenvolvidos - prevê.
José Sarney deixa a presidência
do Senado em 1º de fevereiro reafirmando seu orgulho da Casa. Faz questão de
dizer que o Brasil é hoje um país grande e único graças ao Senado, que ajudou a
manter a unidade nacional. Para ele, modernização e transparência serão dois de
seus principais legados nesta última passagem pelo comando da Casa.
Veja os principais trechos da entrevista concedida
na segunda-feira (28).
Brasil, país do presente
Sempre fui muito otimista
e nunca tive dúvida do grande destino de nosso país. Tivemos os anos dourados
dos Estados Unidos, da Europa e do Oriente. Evidentemente que as únicas áreas
do mundo ainda à espera do progresso da humanidade, da ciência e da tecnologia
a serviço do homem são América do Sul e África. Acredito que chegou o tempo da
América do Sul. O Brasil hoje ocupa mundialmente posição de destaque e começa a
participar das decisões mundiais. Os países emergentes estão determinando que a
distribuição do poder do mundo não seja mais unipolar, mas multipolar, a fim de
que seja democratizada a tomada de decisões em nível internacional. Hoje somos
a sexta economia mundial e realmente nossa marcha será para uma posição entre
os mais desenvolvidos.
Oportunidades
No Brasil estamos vendo
em passos largos a incorporação das classes mais pobres ao acesso à riqueza
nacional. A República completou cem anos. Começou praticamente com um golpe
militar, passou pelos bacharéis, que haviam formulado as teorias republicanas;
pelos barões do café; pelos eruditos e teóricos; e depois pela participação de
classes médias e de militares. Ultrapassamos tudo isso e chegamos a um operário
no poder. Assisti a todas essas mudanças. Às vezes fui testemunha, às vezes,
protagonista. Pude ver como o Brasil progrediu. Hoje podemos dizer que todas as
classes brasileiras já participaram do poder e tiveram oportunidade. E, para
completar, temos uma mulher no comando. Quando os americanos dizem que
colocaram um negro na Presidência, podemos dizer que colocamos uma mulher.
Mundo em transformação
Vejo um mundo
transformado. Saí do lápis e vi a caneta-tinteiro, depois fui para a caneta,
para máquina de escrever, para a máquina elétrica e cheguei até o computador.
No Senado, em 1995, as atas eram feitas a mão, com seis meses de atraso, à
medida que as atribuições da casa aumentavam. Hoje temos acesso instantâneo a
tudo. Foi uma revolução a que assisti. E, neste tempo, procurei me colocar
sempre dentro deste mundo em transformação. Nunca me voltei para o passado, com
nostalgia, pensando que no meu tempo tudo era muito melhor. Acho que cada vez o
mundo melhora mais. Cada geração tem suas circunstâncias. Na política
presenciei todos os sistemas que, na minha mocidade, julgávamos que mudaria o
mundo, como comunismo, integralismo, fabianismo. De repente, verificamos que a
melhoria da qualidade de vida da humanidade era feita mais por um cientista do
que por todas estas teorias políticas. Foi o que aconteceu quando [Alexander]
Flemming descobriu a penicilina, por exemplo. Isto significa o fim das
ideologias, a morte das ideologias. O mundo do presente e do futuro é muito
mais formado por países que dominam o conhecimento e a tecnologia do que por
países dependentes. O desenvolvimento passa pela qualificação e educação. E o
Brasil, infelizmente, ainda não encontrou este caminho.
A arte do possível
Como a sociedade
democrática é uma sociedade de conflitos, cabe justamente à política harmonizar
tais conflitos. Procurei pautar minha vida vendo a política desta maneira,
procurando fórmulas de consciência. Significa que ninguém precisa esmagar
ninguém e ninguém precisa passar por cima de ninguém. É necessário harmonizar
os conflitos encontrando uma solução que seja possível. Então, voltamos à
definição de Bismarck de que a política é a “arte do possível”.
Senado mais forte
Sempre me recusei a
participar de mesas porque sempre fui pautado pela articulação política, pela
liderança partidária. Ao mesmo tempo, eu era um homem, vamos dizer assim, na
linguagem parlamentar, “de plenário”. Mas, em 1994, rendi-me aos apelos dos colegas
e assumi a Presidência do Senado, quando esta era uma casa praticamente
apagada. A casa legislativa mais importante era a Câmara dos Deputados. O
Senado tinha uma posição de segundo plano em termos da visibilidade nacional e
mudamos isso. O Senado ganhou em importância e visibilidade. É para onde todos
vêm. Acham que aqui nós resolvemos tudo. Passamos quase a ser a bacia das
almas, aquela onde as coisas querem que tudo seja resolvido, e imediatamente. Sentimos
isso na maneira como somos visitados por todos. Nós éramos a casa dos estados
onde se buscava o equilíbrio da federação, mas nos transformamos também no
coração do legislativo brasileiro; passamos a ser uma esperança e, por isso,
também agregamos muitas críticas.
Marca da gestão
Como eu disse, nós saímos
das atas escritas à mão e hoje nós temos nossa administração toda
informatizada. Uma das marcas que ficam da minha gestão é a da
modernização. Temos uma casa absolutamente moderna, e não é fácil administrar
uma casa colegiada. No futuro, quando se procurar saber quando realmente o
Senado mudou, vamos encontrar que mudou quando nós conseguimos marchar para a
modernização. A transparência da casa também evoluiu. O Plenário, por exemplo,
era completamente vazio, não tinha controle de frequência, o que era muito
censurado pela opinião pública. Hoje, temos controle, temos o tempo real. Todas
as intervenções e tudo o que acontece é colocado no portal do Senado. Nada tem
direito a ser escondido.
Interação com a sociedade
Na área de comunicação,
somos pioneiros no Brasil com a criação da TV Senado. Houve também a criação da
Rádio Senado e da Agência Senado. Além disso, a interatividade com a população
brasileira aumentou. Basta vermos que o serviço Alô Senado recebe, por mês, 2
milhões de chamadas. Isso significa o quê? Significa que o povo está
interagindo. O Portal de Notícias, por exemplo, tem 1 milhão de acessos por
mês. Então, se somarmos os meios de interação disponíveis, vamos encontrar mais
de 5 milhões de brasileiros interagindo conosco, fiscalizando as nossas
atividades. Da mesma forma, o e-Cidadania, através do qual recebemos muitas
sugestões que são transformadas em projetos de leis ou em ações dentro do
Senado.
Trabalhos mais organizados
Quem trabalha no Senado
sabe como nos tornamos uma casa moderna. Quando entrei no Senado, não sabia nem
o que ia votar, o que estava circulando. Hoje, temos 15 dias de antecedência.
Qualquer matéria que entra em pauta vem dentro do planejamento, e os senadores
já podem saber, a sociedade já pode saber. Temos no Senado uma equipe técnica
extraordinária, de tal modo que não há nenhum projeto, vindo da Câmara ou do
Poder Executivo, que não seja melhorado.
Atualização das leis
As leis brasileiras ainda
remontam a ideias muito atrasadas. É preciso que sejam adaptadas ao nosso
tempo. Por isso, criei comissões e adotei um sistema com grupos de
especialistas e grandes pensadores nacionais para estudar determinados
problemas. Código Penal, Código de Processo Penal, Código do Consumidor, a
Federação... Isso tem servido para que andemos rapidamente. O passo inicial foi
dado. Já andaram muito e estão numa fase quase de conclusão.
Unidade nacional e desigualdades regionais
Sou muito orgulhoso do
Senado. Os historiadores que se dedicam à história do país reconhecem que duas
coisas asseguraram a unidade nacional: o Senado e o Poder Moderador. O Senado
participou disso e por quê? Porque era a casa onde realmente se fazia aquilo
que hoje nós buscamos na política: harmonizar conflitos e buscar soluções
Por isso digo que nós
temos que ter muito cuidado com a federação. Se no passado os homens que
fizeram este Brasil nos deram um país unido, um país grande, um país dessa
magnitude, não temos o direito agora de criar o germe de coisas que nos levem
no futuro à divisão. Não podemos deixar que se inocule nesse país o germe da
secessão. Por isso, a federação tem que se debruçar nos desníveis regionais. A
unidade nacional não resiste a muitos e muitos anos se houver estados
destinados à grande riqueza e outros apenas como satélites, fornecendo mão de
obra barata. Quando se fala em problema do Norte, do Nordeste, estamos falando
não em problemas regionais, mas em problemas nacionais porque aí está embutida
uma coisa muito mais importante, que é a unidade nacional. É a grande
preocupação do Senado. Somos a Casa da Federação. Não podemos deixar que
aumentem os desníveis regionais.
Frustração
Jamais pensei que
chegaria aonde cheguei. Devo isso ao nosso país, onde todos têm oportunidade.
Minha mãe era nordestina, pernambucana, foi para o Maranhão na seca de 1921.
Dizia meu avô: "Vi a cara da fome na seca de 21. Ô bicha da cara feia, só
mata gente em jejum".
Todos nós temos
oportunidades. Veja o Lula, filho também de retirantes, que chegou à
Presidência. Este é um país aberto, com oportunidades para todos. E o grande
caminho é o da educação. Fui autodidata e, se tenho uma frustração, foi não ter
tido a oportunidade de frequentar grandes universidades. Sempre tive essa ânsia
de conhecimento. Sempre fui bom estudioso. Todo dia devo aprender alguma coisa,
por mais simples que seja.
Por isso, o grande
desafio para o futuro do Brasil é a educação. Nós ainda não encontramos uma
solução para o problema. Temos que encontrar e dizer o caminho para tocar em
frente.
Legado político
Presidi a transição
democrática e assumi a Presidência da República num momento trágico [após a
morte de Tancredo Neves em 1985]. Às 3h da manhã me comunicaram e assumi às
10h. Não conhecia os ministérios, nem tinha participado do programa de governo.
O país saía de um regime ditatorial, e grupos clandestinos afloravam. Então fiz
a costura da transição. O que foi isso, ninguém pode saber. E quem pagou mais
fui eu. Fui sacrificado. Todos achavam que a democracia morreria em minhas
mãos. Eu mesmo achei que seria deposto. Não havia partido político. Não tinha
quem me apoiasse. Vinha de uma dissidência. Tinha entrado para possibilitar a
vitória do partido. Com isso tudo, fizermos a transição democrática e este é
até hoje o maior e mais longo período que o Brasil atravessou de forma
tranquila e democrática. As instituições se consolidaram, os militares saíram
da política e, em 1989, um operário foi candidato à Presidência.
Luta pelo social
Também acredito que
coloquei o social dentro das preocupações maiores do país, pois até então só se
falava em economia, em combate à inflação. Vamos fazer recessão para
equilibrar, diziam na época. A Europa está fazendo isso. E eu me recusei porque
sabia que entraríamos num processo em que o povo pagaria, e o regime não
sobreviveria a uma recessão. Então, entrei num programa heterodoxo. Tivemos a
coragem de iniciar, contra todas as teorias econômicas daquele tempo, o Plano
Cruzado e o congelamento de preços. Até hoje, homens de grandes redes falam da
inflação no Brasil daquele tempo. Só que a inflação era com correção monetária.
Os números não têm o mesmo significado que têm hoje. Se havia inflação de
preços, tinha inflação do salário. Corrigiam-se mensalmente os salários e isso
se constituía num colchão, de modo que tivemos a menor taxa de desemprego da
história do país: 3,16% em média. Os programas sociais iniciados estão aí até
hoje e floresceram. Começaram naquele tempo. Contra a fome, distribuição do
leite, seguro-desemprego, impenhorabilidade da casa própria, universalização da
saúde... Naquele tempo, quem não fosse empregado com carteira assinada só tinha
Santas Casas ou Vicentinos. Transformamos a saúde como dever do Estado. Pode
funcionar mal, mas é um direito do cidadão. Mas apanhei muito. Quem está na
política apanha. Faz parte da democracia, dizem os estudiosos, a primeira lei
da política é desqualificar o adversário.
Futuro político
Não tenho mais futuro, eu
tenho passado. Já disse isso. A política é cruel e é uma amargura permanente.
Mas ao mesmo tempo dá satisfação de trabalhar pelas pessoas. O verdadeiro
político nunca pensa individualmente. Essa motivação me levou a ser político a
vida inteira.
Conselhos aos novatos
Primeiro tem que ter
vocação para a vida pública. Quem não pensar coletivamente, ou só pensar
individualmente, jamais deve entrar para a política. Se entrar, vai querer
defender somente interesses pessoais. Se não tiver paixão de liderar em
benefício da coletividade e tiver visão pequena e estreita, será um mau
político e vai entrar por práticas que condenamos tanto. Em segundo lugar, tem
que se preparar para ter visão humanista. Assim, terá arcabouço para ser um bom
político. Para isso, tem que estudar. Falar sobre um problema que não conhece é
o mesmo que fazer demagogia. Isso é solução simples para problemas difíceis e
insolúveis. Um bom político estuda, até para chegar à conclusão de que o
problema é de solução difícil e não tem solução imediata. Idealismo é também o
principal. Se não tiver o ideal, ele não resiste à batalha política. Quantos
presidentes nossos sucumbiram? Uns pela doença, outros pela deposição, outros
pela renúncia. A única estrutura que nos faz vencer tudo isso é a certeza de
que temos uma função em benefício comum.
Mensagem aos brasileiros
Não veja as coisas pelo
lado simplório ou pelo xingamento. Somos todos filhos de Deus. Temos virtudes e
defeitos... Veja o Senado com a grandeza que representou na história do Brasil.
Não veja pelas pessoas que cometem erros, não veja só pelo momento. O Senado
está aí para trabalhar pela unidade nacional. Quando você recebe o benefício de
uma lei votada pelos senadores, foi o resultado de sua participação como
cidadão. A democracia possibilita o autogoverno. Cobre de seu senador, mas
procure ser justo nas suas avaliações.
Agência Senado
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