segunda-feira, 21 de janeiro de 2013

Wilson Figueiredo - Coisas da Política


Adeus às armas e artimanhas 

Wilson Figueiredo / Jornal do Brasil

Ao soltar o verbo no último dia do ano de 2012, na entrevista de despedida do passado (na Folha de S.Paulo), o senador José Sarney— que nada mais pretende na vida pública — não carregou na mão nem recorreu a ressentimentos, pelo que lhe custou o exercício dos mandatos de parlamentar, governador do Maranhão e presidente da República. Este último, pelo que se entende como destino; os outros, por objetivo e método, como opção de vida. Sarney deu o troco em moeda corrente ao denunciar as medidas provisórias como, senão o fim, pelo menos um bloqueio à evolução da nossa democracia ainda em estágio primário. Qual seja, atada ao presidencialismo personalizado e à generalizada incapacidade da política para equacionar as reformas indispensáveis. Localizou nas medidas provisórias o ponto vulnerável em que o Executivo atinge mortalmente, no coração do Legislativo, o regime democrático brasileiro. Governo e oposição se fazem de surdos, da categoria dos que fingem não ter ouvidos. Os piores, segundo o ditado popular.
Sarney viu nas medidas provisórias um bloqueio à evolução da nossa democracia As palavras do senador, no primeiro dia do novo ano, caíram como pedra em água parada, desenharam círculos que se ampliaram e se desfizeram em silêncio. Nada mais. No dia seguinte, tudo recomeçou como tem sido. Sarney deplorou, sem veemência e com alguma amargura, a incapacidade de governos passarem da palavra à iniciativa de fazer reformas. Falam e nada fazem, como no caso da torre de Babel: cada presidente as entende de maneira conveniente. Ninguém passa da palavra à ação. Um pacto de morte. Não chega a proporcionar saldo apreciável e, nem por isso, ao anunciar a decisão de não assumir compromissos eleitorais ou partidários, Sarney ressalvou que, já que a política não tem porta de saída, continuará a vivê-la cada dia como não sendo o último. Da janela. Sem cargos e sem mandatos, no governo ou no partido. Apenas testemunha atenta. Ao soltar o verbo contra o nível a que chegou o exercício da irresponsabilidade política, depois de duas senhoras ditaduras, por sinal separadas por um dramático período de vida constitucional, de 1946 a 1964: uma ao feitio fascista da época, o Estado Novo (1937-1945), e outra por interferência do viés militar (de 1964 a 1985), fio descoberto desde a própria proclamação da República. Sarney se reservou dois anos como espectador. Sente-se um manual de experiência, tanto à margem da democracia constrangida quanto a outra, onde o que se entende por interesse público é tratado como interesse privado. Não há mais separação. A falta de repercussão dos pontos críticos relacionados na entrevista autoriza o ex-presidente José Sarney a conjugar os verbos, com conhecimento de causa e consequências, embora o silêncio diga o suficiente para evidenciar que a opinião geral não faz a hora. Opinião pública se aufere mais pelo silêncio do que pelas pesquisas. O senador Sarney não fala pelo Amapá nem pelo Maranhão, mas pelo que restou de uma geração que se atrasou na vida pública e não marcou diferença importante. A geração dele foi a última fornada que se alçou ao poder no espalhafato com que o já então anacrônico sistema político de 1946 se desestruturou com Jânio Quadros. Em sete meses, o equívoco da premissa, simbolizada na vassoura como troféu de governo, varreu o mandato presidencial e deixou vazio o espaço onde um governo improvisado estava atônito. E nem foi capaz de compor a transição. O parlamentarismo subiu ao palco para montar a aparência de normalidade e encaminhar o plebiscito que se resumiu em fazer de conta que tudo ia bem, e iria melhorar. O presidencialismo voltou por baixo do pano, e o parlamentarismo foi outra plantinha tenra, que não pegou de muda.
Era a velha história que se repetia, mas fora da versão que deixou pelo caminho a iniciação da esquerda no clima da Guerra Fria, na qual os brasileiros entraram com o pé esquerdo (salvo seja) por não estarem devidamente informados. O preço do equivoco foi alto: o parlamentarismo improvisado e intercalado de truques e recursos presidencialistas não passaria de hiato, e a crise acabaria atropelada pelos que não aprendem com os próprios erros. No grupo dos que viveram a primeira crise nacional a partir da Renúncia, o então deputado Sarney seguiu seu faro político e escalou as etapas da aparente normalidade, cuja ruptura foi apenas questão de tempo. A solução não se mostrou ao alcance da experiência e aconteceu o que estava embutido no impasse: os governos militares vieram, dispensaram o voto direto e se valeram do indireto no revezamento do poder por tempo indeterminado. Ficou a lição. A impaciência amainou e a pressa empacou. A última cartada do governo militar veio a ser a questão aberta e fechada pelo presidente João Batista Figueiredo, que não digeriu o desequilíbrio causado pela dissidência do partido oficial, de onde saíram os votos que fizeram a diferença. A balança pendeu para o candidato da oposição. Era Tancredo Neves e, a tiracolo, o vice José Sarney. A ironia inexplorada estava na empáfia com que o PT se recusou a participar da eleição indireta por uma equivocada questão de princípio, na hora de botar o ponto final na ditadura.

O PT se recusou a participar da eleição indireta, na hora de botar o ponto final na ditadura 

A traição venceu e dispensou o perdão da opinião pública. O artífice da manobra, que custou ao governo militar a derrota na última eleição presidencial indireta, não foi execrado pela manobra que o depurou dos eventuais pecados políticos: o senador José Sarney emergiu no plano nacional como candidato a vice de Tancredo Neves e passou à história na operação de dividir os votos com que o governo contava. Para lembrar: a bancada do PT, com Lula em destaque, recusou o voto indireto para sair da ditadura e ficou para sempre à margem do episódio. Pelo menos naquela oportunidade, foram absolvidos a traição e o seu artífice. Ao fim e ao cabo, era o mesmo Brasil. Mas a história não terminaria aí. No último capítulo do ciclo de presidentes militares, o general João Batista Figueiredo — por sua vez — se recusou a passar o governo ao vice-presidente a quem coube, por morte de Tancredo Neves, assumir legitimamente a Presidência alcançada pelo voto indireto, com sabor histórico de voto direto. Inclusive a garantia dada à posse pelo ministro da Defesa, o general Leônidas Pires Gonçalves. Com a posse de Sarney, começou o mais longo trecho do percurso histórico que conta, a seu favor, tempo e aprovação suficiente para prosseguir. A democracia está à vista e depende, fundamentalmente, das reformas políticas como empreitada nacional. 

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