Por Olimpio Guarany*
Foi no oratório de San
Felipe Neri, em Cadiz, Espanha, a 19 de março, promulgada a constituição
de 1812, documento que deu o grito de liberdade do povo espanhol. A Espanha,
tomada por Napoleão, fervilhava. A terceira constituição democrática do mundo
ocidental, com 384 artigos, foi escrita em tempo recorde. Era preciso
aproveitar o entusiasmo do povo espanhol e a reação contra as forças de
Napoleão. Durou pouco é verdade, mas foi um marco na história, ao ponto de
servir de referência para constituição portuguesa e de outros países ibero-americanos.
A história
A constituição de Cadiz
nasceu a partir da sequência das profundas mudanças sociais desencadeadas na
Europa pela expansão do iluminismo, pela Revolução Francesa e pelo período de
grande instabilidade sociopolítica provocado pelas guerras napoleônicas. Enquanto
Dom João VI desembarcava no Brasil com a familia real, o povo de Madrid reagia
contra os franceses. Um movimento espontaneo ganhou corpo em todos os pontos da
Espanha, as chamadas Juntas, que depois se transformaram na Junta Suprema
Central, com sede primeiro em Aranjuez e depois em Sevilha. As suas
funções principais eram dirigir a guerra contra a ocupação francesa e preparar
a posterior reconstrução do Estado. Neste quesito, admitia-se duas
possibilidades distintas sobre o futuro político espanhol: a primeira delas,
consistia na restauração das normas prévias da Manarquia Absoluta e o retorno à
situação anterior à intervenção francesa; a segunda, liberal, implicava na
promulgação de uma Constituição para o Estado espanhol e a modernização global
das suas estruturas, de acordo com os preceitos liberais implícitos nas ideias
iluministas e racionalistas. Venceu a segunda. Para escrever a Constiuição
foram criadas as Cortes Generales y Extraordinarias com
poderes constituintes.
A constituição
Os principios
fundamentais propostos foram ratificados, tais como: a soberania popular,
reiterava que a soberania reside no povo e não no rei; a legitimidade dinástica
de Fernando VII de Espanha como chefe de Estado; a separação de poderes, com a
independência e inamovibilidade dos juízes; e a inviolabilidade dos deputados
no exercício do seu mandato. A Constituição de Cádiz foi um grande passo
rumo a democracia. Apesar de construida em pouco tempo atentou para a
legalidade do momento, onde tudo foi discutido e acordado, determinando
cuidadosamente quem eram os legítimos representantes do povo. Mas, durou pouco.
Quando Fernando VII foi restaurado no trono, em Março de 1814, em consequência
da derrota francesa na Guerra Penisular, foi obrigado a jurar que respeitaria a
Constituição. Contudo, encorajado pelas forças conservadoras que dominavam a
sociedade espanhola, no dia 4 de maio de 1814 contestou formalmente
a Constituição de Cádiz. Seis dias depois mandou prender os líderes liberais,
alegando que as Cortes tinham reunido na sua ausência e sem a sua autorização.
Com estes atos rasga a Constituição e restabelece a doutrina de que a
autoridade soberana era uma prerrogativa pessoal do rei, não requerendo
legitimação popular.
Os 200 anos
Essa semana, em Cadiz,
Espanha representantes de todos os paises ibero-americanos se reuniram para
comemorar o bi-centenário da “La Pepa” como foi denominada
carinhosamente pelo povo a primeira constituição, por causa da coincidencia de
ter sido promulgada no dia de São José. “La Pepa” é o diminutivo carinhoso de
Josefa, alcunha que durante muitos anos foi utilizada como grito revolucionário
pelos seus apoiadores espanhois. Para este evento foi convidado o senador José
Sarney, ex-presidente da maior democracia ibero-americana, o Brasil. Sarney foi
especialmente destacado para fazer a palestra de abertura e ressaltou a
importância histórica daquele documento para o povo ibero-americano. Responsável
pela histórica transição democrática, José Sarney é reconhecido, também, no
exterior como um democrata de alto galardão, um homem que sempre defendeu as
liberdades e a cidadania. Foi ele quem, na Presidência da República, criou
todas as condições para que fosse escrita a atual constituição brasileira, uma
das mais avançadas do mundo e teve o privilégio de promulgá-la. Em Cadiz, no
último dia 24, ao discursar para seus pares parlamentares e estadistas
ibero-americanos, durante o VIII Foro Interparlamentar Ibero-Americano,
em comemoração ao bi-centenário da constituição espanhola, Sarney destacou: “Os
princípios instituídos aqui em Cádiz há 200 anos permaneceram e se consagraram
universalmente. Se, sem dúvida, eles se alimentaram das grandes gestações
inglesa, americana e francesa, inauguraram uma linha própria, que abastece a
tradição constitucional em todo o mundo, com destaque para o mundo ibero-americano,
e, nele, o brasileiro”. Sarney foi além, ao dizer que “Seguindo tais
ideias liberais de La Pepa, discutia-se num Brasil que surgia como nação, a
liberdade de imprensa, quando a imprensa nascia; os predicados da magistratura,
quando surgia o Judiciário; o habeas corpus, quando o monarca era absoluto”.
* Olimpio Guarany escreve, todas as quartas e domingos em A Gazeta
Nenhum comentário:
Postar um comentário