Por
Renato Janine Ribeiro*
O reconhecimento de direitos
trabalhistas às domésticas é apenas um passo a mais, embora crucial, numa
história moderna que passou não só pela abolição da escravatura, mas, perto de
nós, pela igualdade entre homem e mulher na família e pelo projeto de lei da
palmada, ainda não aprovado, que visa a coibir a violência dos pais contra os
filhos. Todas essas medidas seguem a mesma lógica - que é a do ingresso da Lei
e da Justiça (no sentido também de Judiciário) em espaços que antes lhes eram
imunes, porque pertenciam à vida privada, doméstica ou íntima, como queiramos
chamá-la. Pensemos nos anos 1960. Por lei, o marido era o chefe da família.
Cabia-lhe decidir a residência comum. Se resolvesse mudar de cidade, a mulher
devia segui-lo - ou seria culpada de abandono (sic) do lar, ensejando um
processo de separação que a penalizaria na guarda de filhos. Isso valeu até
1962, quando a mulher foi erigida a colaboradora (mas só isso) do chefe da
família. Ou falemos em 1983, quando Franco Montoro se tornou governador de São
Paulo e criou a primeira delegacia da Mulher no Estado. Até então, a mulher
estuprada era frequentemente humilhada na delegacia onde fosse prestar queixa.
Ou o "defloramento da mulher, ignorado do marido": se após o
casamento este descobrisse que a noiva não era virgem, podia requerer a
anulação. Isso apenas acabou em 2002, com o novo Código Civil. Ou ainda a lei
Maria da Penha. Embora eu considere essa lei sexista, porque não pune a
violência da mulher contra o companheiro, mas só o contrário, foi um avanço. É
de 2006. Com tais medidas, a Lei entrou onde, antes, a violência não encontrava
obstáculo. Mas respeitemos as razões de quem se opõe a essas mudanças. É
absurdo - e desnecessário - fazer caricatura dos que discordam de nós. Um
argumento contra essas leis é: elas introduzem numa relação íntima (o casal, a
família), ou doméstica (patrões e empregadas), um terceiro elemento, o Estado,
que esfria o afeto entre as pessoas. Em vez de resolverem elas mesmas os conflitos,
passam a desconfiar uma da outra. Há verdade nisso. Mas conflitos domésticos
nunca opuseram iguais, e sim desiguais. É justo a sociedade, pela lei, barrar a
violência na casa, para que se negocie em real igualdade. Além disso, o
terceiro ator que entra na cena doméstica, o Estado, não é o governo, nem o
Poder Executivo. É geralmente o Judiciário e, mesmo, a opinião pública. Quem
passa a achar intolerável a violência física contra mulher e filhos, ou a
exploração da empregada em jornadas excessivas, é a sociedade. O Poder
Executivo é até tímido. Faz tempo que poderia investigar se os patrões
registram as domésticas, obrigação legal que existe há décadas e a meu ver é
mais importante, de fato (mas não simbolicamente), do que a nova lei. Por que
nunca as Delegacias do Trabalho foram ver, nas casas dos ricos ou da classe
média, as condições de emprego doméstico, ou pelo menos se elas têm carteira
assinada? Provavelmente, continuarão a não ir. Mas a emenda empodera as empregadas
para exigir também esse direito que já tinham. Quando uma mulher agredida se
queixa do marido na delegacia, acaba o ditado "em briga de marido e
mulher, ninguém mete a colher". A democracia é justamente essa colher.
Briguem, resolvam só vocês seus conflitos, mas ninguém bata em ninguém. O que
se coíbe é a violência. O marido, se quiser mudar de cidade, não pode impor
isso à esposa. Tem de negociar. É uma negociação sem última palavra: pois esse
é o significado do diálogo. Isso tem, obviamente, um custo. Mas é o mesmo custo
genérico da vida contemporânea. Todos nós somos, hoje, mais conscientes de
nossos direitos e, ao mesmo tempo, mais impacientes. Toleramos menos que nossos
pais e avós. Isso é ruim? Em parte, sim. Os laços afetivos se tornaram mais vulneráveis.
Nosso desafio é aprender a cuidar melhor deles, porque a tendência é a
rompê-los ao primeiro desentendimento. Mas nada disso justifica a violência,
contra mulher e filhos, ou a humilhação da doméstica. Isso posto, a legislação
nova precisa de uma regulamentação urgente, até porque já vige o novo preceito
constitucional e há questões em aberto. Melhor teria sido tramitarem ao mesmo
tempo a emenda e a legislação pertinente: diminuiria tensões e não haveria as
demissões preventivas que já ocorrem. Ao contrário do que tenho lido na
imprensa e no Facebook, patrões não são todos vilões, nem todas as empregadas
são do bem. Mas quero dizer, a quem se sente incomodado com a emenda 72, que
esse mesmo incômodo já afetou muitos, em especial os homens, ao saberem que não
podiam mais impor a vontade a seu entorno. A tendência das relações
democráticas é a se expandirem. Isso significa que, de forma de governo, elas
vão se tornando formas de vida. Saem do mero poder político para contaminar a
sociedade e mesmo as microssociedades que são as famílias, os casais. Iluminam
os cantos desconhecidos da vida. Obedecem, assim, ao princípio do Iluminismo:
as luzes melhoram o mundo. Se formos conscientes disso, nos adaptaremos melhor
à nova realidade. As patroas ganharão, se entenderem que o reconhecimento dos
direitos trabalhistas às domésticas se dá em sequência à conquista da igualdade
delas mesmas com seus maridos. Se quisessem manter o status quo, deveriam
voltar à família patriarcal - porque só nesta a Lei e a Justiça param do lado
de fora da casa. Assim era em Roma antiga, mas isso incluía o direito do
"pater familias" a matar, sem processo, mulher, filhos e servidores.
A família estava fora da esfera legal. Vivemos hoje num mundo diferente e,
arrisco dizer, melhor.
Renato Janine Ribeiro é
professor titular de ética e filosofia política na Universidade de São Paulo.
Escreve às segundas-feiras
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