sexta-feira, 11 de março de 2011

José Sarney

Maracujá de Época

Descartes, o mais notório dos filósofos que defenderam a “dualidade substancial”, isto é, que os homens possuem o corpo e a alma totalmente independentes, um e outra separados, certamente nunca viu nem podia ver um Carnaval brasileiro. É uma festa popular, e demonstrativa de que não há separação alguma. Se são dois em um passam a ser um em dois na compulsão da alegria, numa entrega total do corpo no gingado do samba no pé e no evidente relaxamento de qualquer reserva moral — de tal modo que não é o Ministério da Educação, guardião da sanidade cívica, que exige ter cuidado com a alma, mas o Ministério da Saúde que esclarece que se deve ter cuidado é com corpo, pois a camisinha, tão necessária quanto rejeitada, não pode faltar e incorporou-se de corpo e alma no Carnaval, que agora não necessita somente do estimulante da bebida e da batucada frenética, mas essencialmente de um quarto, onde tudo termina e começa. Vim passar o Carnaval no Maranhão, onde o que mais se deseja é manter os valores da tradição, no saudosismo dos velhos carnavais, onde o forte são os blocos de rua, sem ninguém querer saber quem é preto, branco, amarelo ou vermelho, nem cafuzo nem mulato, católico ou evangélico ou umbandista ou espírita, rico ou pobre, irmanados todos num único valor: a cultura da alegria, do brincar e do se esbaldar, que ninguém é de ferro. O Maranhão recusa render-se ao trio elétrico, preferindo os circuitos de rua com as figuras que são de vários séculos, o Fofão e o Cazumbá a pularem e gritarem para terror da meninada. Este ano até uma novidade raríssima apareceu. Um pé de maracujá cuja fruta tem a forma nada convencional do órgão genital masculino — de fazer inveja aos anjos barrocos e comedidos que o Aleijadinho esculpiu nas igrejas de Minas. Logo foi fundado um bloco, o Maracujá Safado, que em três dias já tinha quinhentos adeptos, com o dito, copiado em isopor, pendurado no pescoço. A dona da casa onde apareceu a novidade começou a cobrar dois reais para quem quisesse vê-lo, já cantando a marchinha: “eu quero ver maracujá”. A Embrapa foi acionada para observar o fenômeno e estudar a maneira de plantá-lo e reproduzi-lo, o que seria um inusitado produto de exportação, com compradores cativos nas sex shops. E a irreverência do nome dos blocos? O Jegue Folia, Casinha da Roça, Vira Lata, Bicho Terra, Confraria do Copo, Lapada, C-de-Asa, Máquina de Descascar Alho, Não Enxerisa Malandro, Siri-na-Vara e tantos e tantos outros de regue, afro, índio, caboclo de pena. Todos com o lema orgulhoso: “Carnaval da Tradição, melhor do Brasil, é do Maranhão.” Com maracujá e tudo.

José Sarney foi governador, deputado e senador pelo Maranhão, presidente da República, senador do Amapá por três mandatos consecutivos, presidente do Senado Federal por três vezes. Tudo isso, sempre eleito. São 55 anos de vida pública. É também acadêmico da Academia Brasileira de Letras (desde 1981) e da Academia das Ciências de Lisboa.

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