segunda-feira, 26 de agosto de 2013

José Sarney

Um conselho do Barão

O povo ianomâmi é talvez o povo mais antigo da Terra, cerca de cinco mil anos. É um patrimônio do Brasil. Se ele existe é porque o Brasil o conservou até hoje, quando outros países dizimaram os seus índios. O Padre Vieira dizia que o sofrimento da América era castigo pelo sangue e injustiça cometida contra nossos índios. Presidente, determinei que antropólogos e sociólogos, com apoio de outras equipes, fizessem um completo levantamento dessa região indígena. Recenseamos 9.910 ianomâmis e, com esses, cerca de mil maiongongues, esquecidos até mesmo do noticiário, e em pior estado. Criamos 19 reservas indígenas com cerca de 200 hectares para cada índio, média maior que a média nacional. Elas foram demarcadas e protegidas pela Floresta Nacional de Roraima, pela Floresta Nacional do Amazonas e o Parque Nacional do Pico da Neblina, nove milhões de hectares criados por mim, intocáveis em face da legislação e sujeitos à jurisdição do Ibama e da Funai. A mesma orientação foi seguida com os ti-cunas e os tucanos, no alto Solimões e na Cabeça do Cachorro. A filosofia é criar um colchão de proteção para as reservas indígenas, sempre vulneráveis à cooptação dos caciques pelos especuladores de madeira, que têm devastado os territórios dos índios. O problema da invasão dessas áreas não é só de polícia, mas de cultura. O homem branco não respeita nem leis nem limite em sua cobiça, e o Estado não dispõe de condições de exercer o seu poder de fiscalização e controle. Não tivemos unanimidade quanto à criação das florestas nacionais. Muitos desejavam estender a área indígena até o limite da fronteira. Não existe nenhuma aldeia ianomâmi junto à linha de fronteira. As mais próximas estão afastadas desta cerca de 20 quilômetros. Levar desnecessariamente demarcação de uma reserva indígena até o limite da fronteira, essa linha invisível onde vai a soberania nacional, sob a argumentação de que na Venezuela existe o mesmo grupo étnico, que fala a mesma língua, com território contínuo, é reconhecer os ingredientes de um Estado autônomo, o gérmen futuro da divisão do país e uma porta de entrada de grandes interesses na Amazônia, logo na Serra da Neblina, onde se encontra a maior província mineral do Brasil. Não estou vendo fantasma ao meio-dia. Li essa pretensão em documentação enviada ao exterior. Uma vez Dom Ivo Lorscheider veio falar-me sobre a reserva ianomâmi. Ele trazia a reivindicação de a reserva indígena incluir uma área que chegava até a fronteira. Dom Ivo era um homem em que a fé e a vivência apostólica tornaram as ideias claras, simples, que fluem sem fórmulas de cortesia e, por isso mesmo, são delicadas e bem postas. Ele sabia ver as duas margens de um rio. Disse-lhe que era contrário a levar a reserva ianomâmi até o limite da fronteira, essa linha invisível que Miguel Torga dizia que carrega um sentimento da pátria à menor flor ali existente, mesmo adormecida. Seria um crime contra o Brasil legar ao futuro um problema dessa magnitude. Questionou-me Dom Ivo, sem juízo de valor: “Recomendação de órgãos de segurança?” Respondi-lhe: “Não Dom Ivo, conselho do Barão do Rio Branco”. Rio Branco, depois de 30 anos de Europa, viu que as grandes guerras nasciam dos conflitos de fronteira. Aqui chegou com a determinação de eliminá-los. O Brasil tem fronteiras com dez países. Mais do que o Brasil só a China e a antiga URSS. Mas nenhuma zona de consternação. Ele costurou habilmente, meticulosamente, o problema. Às vezes com malícia. Deu a Nabuco o osso perdido da Guiana, guardou para si os loiros do laudo suíço que nos legou o Amapá. Como, agora, perder a visão do futuro? A História não perdoaria um erro desse tamanho, e crasso. Quanto aos ianomâmis e maiongongues, nosso dever é protegê-los, conservá-los, ajudá-los a evitar e a diminuir suas desgraças. Essa tarefa tem que ser feita com paixão e coragem. Mas nada tem a ver com a ampliação da reserva à faixa de fronteira, até mesmo porque, aí, não existe nenhum ianomâmi. A não ser na cabeça dos senadores americanos, para nos dar dor de cabeça. Ouçamos o conselho do Barão do Rio Branco: com fronteiras não se brinca!

José Sarney foi governador, deputado e senador pelo Maranhão, presidente da República, senador do Amapá por três mandatos consecutivos, presidente do Senado Federal por três vezes. Tudo isso, sempre eleito. São 55 anos de vida pública. É também acadêmico da Academia Brasileira de Letras (desde 1981) e da Academia das Ciências de Lisboa.

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