Um conselho do Barão
O povo
ianomâmi é talvez o povo mais antigo da Terra, cerca de cinco mil anos. É um
patrimônio do Brasil. Se ele existe é porque o Brasil o conservou até hoje,
quando outros países dizimaram os seus índios. O Padre Vieira dizia que o
sofrimento da América era castigo pelo sangue e injustiça cometida contra
nossos índios. Presidente, determinei que antropólogos e sociólogos, com apoio
de outras equipes, fizessem um completo levantamento dessa região indígena.
Recenseamos 9.910 ianomâmis e, com esses, cerca de mil maiongongues, esquecidos
até mesmo do noticiário, e em pior estado. Criamos 19 reservas indígenas com
cerca de 200 hectares
para cada índio, média maior que a média nacional. Elas foram demarcadas e
protegidas pela Floresta Nacional de Roraima, pela Floresta Nacional do
Amazonas e o Parque Nacional do Pico da Neblina, nove milhões de hectares
criados por mim, intocáveis em face da legislação e sujeitos à jurisdição do
Ibama e da Funai. A mesma orientação foi seguida com os ti-cunas e os tucanos,
no alto Solimões e na Cabeça do Cachorro. A filosofia é criar um colchão de
proteção para as reservas indígenas, sempre vulneráveis à cooptação dos
caciques pelos especuladores de madeira, que têm devastado os territórios dos
índios. O problema da invasão dessas áreas não é só de polícia, mas de cultura.
O homem branco não respeita nem leis nem limite em sua cobiça, e o Estado não
dispõe de condições de exercer o seu poder de fiscalização e controle. Não
tivemos unanimidade quanto à criação das florestas nacionais. Muitos desejavam
estender a área indígena até o limite da fronteira. Não existe nenhuma aldeia
ianomâmi junto à linha de fronteira. As mais próximas estão afastadas desta
cerca de 20
quilômetros . Levar desnecessariamente demarcação de uma
reserva indígena até o limite da fronteira, essa linha invisível onde vai a
soberania nacional, sob a argumentação de que na Venezuela existe o mesmo grupo
étnico, que fala a mesma língua, com território contínuo, é reconhecer os
ingredientes de um Estado autônomo, o gérmen futuro da divisão do país e uma
porta de entrada de grandes interesses na Amazônia, logo na Serra da Neblina,
onde se encontra a maior província mineral do Brasil. Não estou vendo fantasma
ao meio-dia. Li essa pretensão em documentação enviada ao exterior. Uma vez Dom
Ivo Lorscheider veio falar-me sobre a reserva ianomâmi. Ele trazia a
reivindicação de a reserva indígena incluir uma área que chegava até a
fronteira. Dom Ivo era um homem em que a fé e a vivência apostólica tornaram as
ideias claras, simples, que fluem sem fórmulas de cortesia e, por isso mesmo, são
delicadas e bem postas. Ele sabia ver as duas margens de um rio. Disse-lhe que
era contrário a levar a reserva ianomâmi até o limite da fronteira, essa linha
invisível que Miguel Torga dizia que carrega um sentimento da pátria à menor
flor ali existente, mesmo adormecida. Seria um crime contra o Brasil legar ao
futuro um problema dessa magnitude. Questionou-me Dom Ivo, sem juízo de valor:
“Recomendação de órgãos de segurança?” Respondi-lhe: “Não Dom Ivo, conselho do
Barão do Rio Branco”. Rio Branco, depois de 30 anos de Europa, viu que as
grandes guerras nasciam dos conflitos de fronteira. Aqui chegou com a
determinação de eliminá-los. O Brasil tem fronteiras com dez países. Mais do
que o Brasil só a China e a antiga URSS. Mas nenhuma zona de consternação. Ele
costurou habilmente, meticulosamente, o problema. Às vezes com malícia. Deu a
Nabuco o osso perdido da Guiana, guardou para si os loiros do laudo suíço que
nos legou o Amapá. Como, agora, perder a visão do futuro? A História não
perdoaria um erro desse tamanho, e crasso. Quanto aos ianomâmis e maiongongues,
nosso dever é protegê-los, conservá-los, ajudá-los a evitar e a diminuir suas
desgraças. Essa tarefa tem que ser feita com paixão e coragem. Mas nada tem a
ver com a ampliação da reserva à faixa de fronteira, até mesmo porque, aí, não
existe nenhum ianomâmi. A não ser na cabeça dos senadores americanos, para nos
dar dor de cabeça. Ouçamos o conselho do Barão do Rio Branco: com fronteiras
não se brinca!
José Sarney foi governador, deputado e senador pelo Maranhão, presidente da República, senador do Amapá por três mandatos consecutivos, presidente do Senado Federal por três vezes. Tudo isso, sempre eleito. São 55 anos de vida pública. É também acadêmico da Academia Brasileira de Letras (desde 1981) e da Academia das Ciências de Lisboa.
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