segunda-feira, 7 de fevereiro de 2011

Sarney mostra que não tem participação no setor elétrico e diz que criará comissão para reforma política

Por Raquel Ulhôa e Raymundo Costa - Valor conômico

Em meio século de política, o senador José Sarney (PMDB-AP) já ocupou por cinco anos a principal cadeira do Palácio do Planalto, nomeou grande parcela dos juízes que ainda hoje integram os tribunais superiores, foi eleito na semana passada para seu quarto mandato na presidência do Senado e é apontado como uma espécie de "dono" do setor elétrico brasileiro, tendo nomeado desde o ministro Edison Lobão (Minas e Energia) ao novo presidente de Furnas, Flávio Decat. Sarney, no entanto, afirma que é tudo intriga da oposição. Ele diz que Lobão é ministro por seus próprios méritos, que não conhece Decat e que a presidente Dilma Rousseff é "muito ciosa das decisões e da autoridade da Presidência". Por isso, nem ele nem o PMDB poderiam cultivar a veleidade de ter a presidente como "refém". Segundo Sarney, a presidente já conseguiu imprimir seu "estilo" e sua "personalidade" ao governo. O ex-presidente, na realidade, participou diretamente das negociações entre governo e PMDB em busca de solução para a crise gerada por denúncias de corrupção contra a direção de Furnas, até então sob comando da bancada do PMDB do Rio de Janeiro. Dilma resolveu o assunto escolhendo Flávio Decat para presidir a estatal e tirou a empresa do controle do deputado Eduardo Cunha. Neste que considera seu último mandato de senador, Sarney definiu como prioridade de sua gestão no comando do Senado a aprovação de uma reforma política. Em sua opinião, o país melhorou nas áreas econômica e social, mas regrediu na política. Ele quer o fim do voto proporcional e defende o "distritão", pelo qual seriam eleitos os deputados mais votados em cada Estado. Trechos de sua entrevista ao Valor:

Valor: Como o senhor vê a relação da presidente Dilma Rousseff com o Legislativo?

José Sarney: A Dilma já conseguiu imprimir o seu estilo, a sua personalidade. É um governo de continuidade sem ter continuísmo, mas já se viu que ela é muito ciosa das decisões e da autoridade da Presidência. Ela é uma grande gestora pública, evidentemente vai se aprofundar na melhoria da aplicação dos recursos, melhorando o gasto público para que eles sejam melhor utilizados. Essa característica ela tem imprimido nos primeiros 30 dias. Agora, não se pode em 30 dias definir o que vai ser o governo dela. Para mim, ela vai ser uma presidente de absoluta lealdade ao presidente [Luiz Inácio] Lula [da Silva], aos programas do presidente Lula, mas vai imprimir a sua personalidade e seu estilo.

Valor: PMDB, PSDB e PT já foram governo. Dilma é a primeira mulher a presidir o Brasil. Ela encerra ou inaugura um ciclo?

Sarney: No meu governo (1985-1990) nós criamos as condições para uma sociedade democrática que não existia no país: a cidadania apareceu, o povo começou a ser muito mais participativo, desdobrou-se na multiplicação de associações, sindicatos, ONGs, sociedade civil. Isso permitiu que nós chegássemos, ao fim dos cem anos da República, com um operário no poder. Então, ninguém pode reclamar no Brasil que não teve oportunidade de tomar parte nas decisões nacionais. Todas as classes já participaram. Até mesmo a última, que é um operário. E agora inauguramos uma etapa, que é uma mulher. É uma etapa de amadurecimento também. Não é só o fato de ser uma mulher. É uma etapa. Primeiro da grande ascensão das mulheres, da luta das mulheres. E, em segundo lugar, o país já ter condições de ter uma mulher como presidente.

Valor: Dizia-se que ela podia ficar refém do PMDB.

Sarney: Ela mostrou que não vai ser refém de ninguém, ela já imprimiu o seu estilo.

Valor: Nem do governo do presidente Lula?

Sarney: Ela vai ser de absoluta lealdade. Nem o Lula queria que tivesse um "laranja" dele no governo.

Valor: A que o senhor atribui a fama de controlar grande parte do governo e do Judiciário?

Sarney: Simplesmente à minha longeva participação na política.

Valor: O senhor não controla os cargos do setor elétrico?

Sarney: Eu não tenho nenhuma participação nas decisões do setor elétrico. Nem tenho nenhum interesse nessa área, que não faz parte das minhas preocupações parlamentares, nem nunca fez.

Valor: Não é o que se diz.

Sarney: Porque o ministro [Edison] Lobão [das Minas e Energia] é do meu Estado. Mas é ele mesmo. Foi governador, senador por quatro vezes, deputado federal, e é um homem que tem uma vida pública. Não é para ser preposto de ninguém.

Valor: Mas os cargos em Furnas mobilizam o PMDB, no momento.

Sarney: Mobilizam o PMDB, mas eu, pessoalmente, não. Hoje eu vi nos jornais a respeito do [Flávio] Decat [escolhido pela presidente Dilma Rousseff para presidir Furnas]. Eu não tenho nenhuma ligação com o senhor Decat. O que sei é que se trata de um excelente técnico e é uma escolha pessoal da presidente Dilma, que com ele trabalhou. Ela tem procurado marcar a sua presença nesse setor, que ela conhece e conhece as pessoas.

Valor: Mas o senhor mediou a disputa no PMDB pelo cargo.

Sarney: Não participei dessas reuniões, nenhuma delas. Soube pelos jornais e alguns relatos de colegas.

Valor: O PMDB não deveria dar liberdade para a presidente adotar soluções técnicas?

Sarney: A presidente da República tem absoluta liberdade. Não deve ter nenhuma interferência para escolher as pessoas que forem as melhores e tenham melhor desempenho. Isso ela tem seguido. Ela conhece bem o setor elétrico, ao qual pertence há muitos anos, desde que foi secretária de Minas e Energia do Rio Grande do Sul. Trabalhou com quase todos esses técnicos, conhece os que são eficientes e os que são ineficientes. Fez todas as suas escolhas pessoais, naturalmente, combinando com o ministro.

Valor: O PMDB é visto como um partido fisiológico, que apoia o governo em troca de cargos. Como o senhor vê essa relação?

Sarney: Nossa relação com o governo federal é uma relação de coparticipação, uma vez que o vice-presidente da República [o deputado Michel Temer] é nosso, o que não ocorria nas outras oportunidades [em que o PMDB apoiava o governo sem participar dele desde o início]. O vice nos representa no governo. Ele está atento a esses problemas e tem interesse em que o governo seja mais exitoso possível e tem sua contribuição a dar.

Valor: Uma parte do PMDB reivindica abertamente cargos. O partido tem que mudar sua prática?

Sarney: Não só o partido. De uma maneira geral, a política brasileira tem que se ajustar mais a discutir as políticas públicas e menos esses problemas. Isso não ocorre só aqui, mas no mundo inteiro.

Valor: Mas em geral não prevalecem os interesses pessoais?

Sarney: Dos problemas da Câmara eu não tenho participado. Aqui, dos problemas do Senado, sim. Como senador, no meio da bancada. Eu apoio o governo e não colocarei os problemas pessoais dessa natureza acima dos interesses do Senado e do país.

Valor: Por que as relações entre o PT e o PMDB são sempre difíceis?

Sarney: Os partidos não têm unidade nacional na sua orientação. Essa é outra consequência da falta de partidos políticos baseados em programas e participação em ações de governo. Isso nós só poderemos resolver com a reforma política. Sem partido político não há democracia. Ela não funciona, não se aprofunda.

Valor: Qual a principal mudança a ser feita?

Sarney: O fim do voto proporcional. No atual sistema, a fragilidade dos partidos é total, eles não têm unidade, os candidatos concorrem nas eleições uns contra os outros dentro do próprio partido e não contra os outros partidos. Não há discussão de programas, de ideias, e isso faz com que se torne uma luta pessoal e não programática.

Valor: A reforma política é realista?

Sarney: É necessária e imprescindível. E tem de ser feita já. Se não se fizer no primeiro ano, não se faz. Entram os grupos corporativistas. Por isso eu quero fazer logo, para que até a metade deste ano nós tenhamos um projeto concreto, em condições de iniciarmos a aprovação. Nós temos três setores no país: o econômico, o social e o político. No setor econômico, o país cresceu, modernizou-se, tornou-se competitivo e alcançou a oitava economia mundial. No setor social, fizemos uma verdadeira revolução, a melhoria da qualidade de vida do povo foi muito grande e houve uma grande distribuição de riqueza. Mas na parte política nós não avançamos, regredimos.

Valor: E o fim do voto proporcional?

Sarney: No dia em que nós acabarmos com o voto uninominal, proporcional, que só existe no Brasil, nós vamos abrir a grande porta para que se possa fazer uma reforma política moderna, atualizada. A constituição de partidos tem que ser feita ao longo do tempo, porque é formação de recursos humanos. Os partidos políticos do mundo inteiro são uma escola de formação de estadistas.

Valor: O senhor já começou a negociar?

Sarney: Tenho conversado, não só na parte política, como também conversei com o ministro da Justiça [José Eduardo Cardozo], que se dispõe a colaborar totalmente. Vou montar uma comissão aqui no Senado para que consolide os projetos em tramitação. Vamos ver os projetos que dependem de lei e os que dependem de reforma constitucional. Enfim, vamos fazer um trabalho de profundidade.

Valor: O que o senhor acha da "janela" na fidelidade partidária, para que os congressistas tenham um tempo para mudar de partido?

Sarney: Se nós fizermos a reforma política, ninguém vai querer sair do seu próprio partido.

Valor: Pessoalmente, o senhor defende qual sistema?

Sarney: Há mais de 30 anos eu apresentei o projeto de voto distrital puro. Hoje eu vejo que é irrealista. Aqui nós teríamos que criar distritos artificiais. E tudo o que se cria artificialmente não é democrático e não funciona. Tenho muita simpatia pelo sistema alemão do voto misto. Mas nós teríamos o mesmo problema da formação dos distritos. A Argentina adotou uma fórmula diferente, a qual chamou de "distritão", considerou todo o país e partiu para o voto majoritário também nas eleições para a formação do Congresso.

Valor: Qual a vantagem?

Sarney: Os partidos vão se interessar em ser programáticos, o país vai então votar em ideias, em propostas concretas, em programas de partido. O voto proporcional nunca permitiu que isso fosse feito. Houve um amadurecimento tão grande da necessidade de se fazer isso, por causa do fracasso que significou esse sistema eleitoral brasileiro, de tal modo que hoje nós praticamente entregamos o processo político para ser conduzido pela Justiça. Não é bom nem para a Justiça nem para a política.

Valor: A oposição acusa o PT de intransigência, de não respeitar o espaço de quem se opõe ao governo.

Sarney: Não há esse espírito. Parlamentos unânimes são impossíveis. Há divergências entre os partidos, mas há um clima muito bom, a oposição está muito bem representada na Mesa. A Mesa é muito plural, e as comissões terão que obedecer a esse espírito. Eu vou fazer tudo para que jamais se possa pensar em esmagar a oposição. Em todo lugar tem que ir a voto no plenário. Na definição famosa dos franceses, a democracia é o regime da maioria com o espírito de minoria.

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