sexta-feira, 28 de setembro de 2012

José Sarney

Lobato e Twain

Embora já tenha esfriado o debate sobre a decisão do Conselho Nacional de Educação que vê em Caçadas de Pedrinho, de Monteiro Lobato, racismo, não quero deixar de opinar sobre o assunto. Poucos no Brasil têm sido defensores da raça negra como eu. Acho, inclusive, ser a escravidão a maior mancha de nossa história. Desde que entrei na política apoiei Afonso Arinos, e fui o criador da Fundação Palmares, dedicada à promoção da raça negra. Fui o autor do primeiro projeto de cotas raciais. O que acontece com Lobato lembra-me um caso clássico da educação americana: o combate ao Adventures of Huckleberry Finn, de Mark Twain. Desde que foi publicada, em 1884, essa continuação do Tom Sawyer causou polêmica, foi considerada imprópria e retirada de currículos e bibliotecas. A reação de Twain (Samuel Clemens, no civil) foi tratar o assunto com humor: “Expulsaram Huck de sua biblioteca como ‘lixo e só adequado às favelas’. Isso vai vender com certeza umas 25 mil cópias”. Mas a discussão continuou. Muitas vezes os que o combatem mais querem utilizar o negro para brilhar do que defendê-lo. Huck foi um extraordinário sucesso. De vendas e literário. Hemingway declarou que “Huckleberry Finn é o livro de onde brota toda a moderna literatura americana”, onde “nada foi escrito de tão bom”. Mas a polêmica continua até hoje. Tudo porque Twain inovou recriando a linguagem de cada personagem com as características da vida no Mississipi, inclusive incorporando o tratamento a um dos personagens centrais, o nigger Jim, escravo fugido. No entanto o livro é uma sátira terrível, onde Jim é o bom caráter, em meio a uma multidão de brancos que representam todos os defeitos da sociedade escravocrata. Além de excluído de bibliotecas, o livro tem enfrentado todo tipo de censura — e sobrevivido como um dos livros mais lidos nas escolas americanas. Sobre a polêmica há toneladas de textos, mas creio que o definitivo é o julgamento do juiz Stephen Reinhard: “Palavras podem machucar, particularmente epítetos racistas, mas um componente necessário de qualquer educação é aprender a pensar criticamente sobre ideias ofensivas. Sem essa habilidade, se pode fazer pouco para responder a elas.” Lobato está em boa companhia. A criação literária é um processo próprio, e tramas, personagens, cenários existem somente na imaginação do autor. Nem por isso deixam de refletir realidades e ser instrumento de mudanças na sociedade. Caçadas de Pedrinho iluminou a vida de milhões de brasileiros, despertando neles o sentido da convivência racial e da igualdade entre brancos e negros.

Artigo publicado originalmente no jornal “A Folha de S. Paulo”
 

José Sarney foi governador, deputado e senador pelo Maranhão, presidente da República, senador do Amapá por três mandatos consecutivos, presidente do Senado Federal por três vezes. Tudo isso, sempre eleito. São 55 anos de vida pública. É também acadêmico da Academia Brasileira de Letras (desde 1981) e da Academia das Ciências de Lisboa.
jose-sarney@uol.com.br 



Nenhum comentário:

Postar um comentário

Acompanhe

Clique para ampliar