segunda-feira, 17 de outubro de 2011

Randolfe Rodrigues

A Copa do Mundo 2014 e a soberania brasileira

“Não é admissível que a presidenta, com a autorização do Congresso Nacional, entregue a gerência de parte de nosso país à Fifa, uma entidade de direito privado”

Em setembro deste ano, com toda a pompa merecida, o governo federal instituiu a contagem regressiva para a realização da Copa do Mundo de Futebol em 2014. Hoje faltam 973 dias para a abertura deste importante evento.
Realizar uma Copa em nosso país, passados 54 anos da sua última edição em solo brasileiro, é política, econômica e culturalmente muito relevante.
No Congresso e na sociedade, se discute insistentemente a capacidade (ou não) de nosso país receber o evento da forma que é esperada. Também se discute muito se os investimentos públicos, especialmente em infraestrutura, serão executados a tempo, com boa qualidade, com preço justo e se, terminado o evento, tais benefícios realmente tornarão a vida das populações residentes nas cidades-sede da Copa do Mundo mais dignas.
A experiência de superfaturamentos e desvios ocorrida quando da realização dos Jogos Pan-americanos no Rio de Janeiro em 2007, deixa todos nós preocupados e alertas.
Mas nesse artigo gostaria de abordar o último absurdo vinculado à preparação da Copa no Brasil. Refiro-me ao Projeto de Lei 2330 de 2011, denominado Projeto de Lei Geral da Copa, que no momento tramita na Câmara dos Deputados. Essa lei tem por finalidade disciplinar medidas relativas aos megaeventos esportivos realizados pela Fifa em 2013 (Copa das Confederações) e 2014 (Copa do Mundo), e faz parte do acordo realizado com a Federação Internacional de Futebol para a realização desses eventos no Brasil.
O PL cria uma situação jurídica excepcional até 31 de dezembro de 2014, alterando normas vigentes, tudo para favorecer os interesses da FIFA, entidade privada que congrega as diversas confederações de futebol e responsável pela execução dos dois eventos que citei anteriormente.
E o que esse projeto quer fazer?
Primeiro, ele determina que não se aplique à proteção dos símbolos pertencentes à Fifa a vedação ao registro de nome, prêmio ou símbolo ligado a evento esportivo no Instituto Nacional de Propriedade Industrial – Inpi, previsto no Art. 124 da Lei 9.272 de 1996. A intenção é que expressões como “Copa do Mundo”, “Brasil 2014”, “Mundial de Futebol”, por exemplo, somente possam ser utilizadas sob licença da Fifa.
Segundo, no seu artigo 11, o Projeto atribui à Fifa, pessoa jurídica internacional de direito privado, a exclusividade para “divulgar suas marcas, distribuir, vender, dar publicidade ou realizar propaganda de produtos e serviços, bem como outras atividades promocionais ou de comércio de rua, nos Locais Oficiais de Competição, nas suas imediações e principais vias de acesso.”
Terceiro, a proposta tipifica crimes exclusivos para determinadas condutas, com penas de detenção que variam de um mês a um ano ou multa, cuja ação penal será condicionada a representação da Fifa.  Destaco um que afeta diretamente a cultura participativa do brasileiro. Fica proibida a utilização indevida dos símbolos oficiais da Copa, sendo que tal infração será penalizada com detenção de um a três meses ou multa.
Sabem o que isso quer dizer? Estarão incursos neste crime, por exemplo, aqueles que, sem autorização da Fifa, pintem os muros de suas casas com os mascotes ou o símbolo da Copa de 2014. Escrever “Brasil 2014”, inclusive, será uma utilização indevida.
Mais uma aberração dessa proposta de Lei Geral da Copa: o PL estabelece que a União responda por quaisquer danos que causar, assumindo os efeitos da responsabilidade civil perante a Fifa por todo e qualquer dano surgido em razão de qualquer incidente ou acidente de segurança relacionado aos eventos, exceto se a Fifa, ou a vítima, houver concorrido para a ocorrência do dano. Na prática, a Fifa não assume a responsabilidade decorrente de um evento privado, sob sua organização e pelo qual obterá lucro.
Quinto absurdo. A União garantirá sem ônus para a entidade organizadora dos eventos, os serviços de segurança, saúde e serviços médicos, vigilância sanitária, alfândega e imigração, dentre outros.
A proposta de lei também suspende a vigência de vários capítulos da Lei nº 10.671 de 2003, conhecida como Estatuto do Torcedor, especialmente aqueles que tratam sobre transparência na organização; regulamento da competição, relação com a entidade de prática desportiva e relação com a justiça desportiva.
Na verdade, o alvo é o artigo 13-A, que, dentre outras medidas, proíbe a venda de bebidas alcoólicas nos estádios. Uma das patrocinadoras da Copa do Mundo é a cervejaria Imbev, através da marca “Budweiser”. Ou seja, revoga-se a proibição de bebida alcoólica e, de quebra, impõem-se aos brasileiros a obrigatoriedade de consumir a cerveja de preferência dos dirigentes da Fifa, pelo menos no que se refere a patrocínio. Por muito menos ocorreram revoltas em nosso país.
Coerente com a tentativa de transferir a responsabilidade civil para a União, essa proposta suspende a validade do artigo 19, que estabelece a responsabilidade civil objetiva da entidade organizadora por quaisquer prejuízos causados por torcedor que decorram de falhas de segurança.
O Projeto de Lei Geral da Copa faz significativas alterações em nossa legislação, inclusive penal, para atender aos interesses exclusivos da Fifa.
Não seria exagero dizer que até 31 de dezembro de 2014 haverá a privatização de espaços públicos, como os locais dos eventos e suas vias de acesso, que estarão sob domínio exclusivo da Fifa. A restrição do trânsito de veículos pelas vias públicas, caso eles carreguem algum tipo de publicidade apenas em função da realização das Copas é absurda.
Absurda também é a imposição de pena àqueles que, sem qualquer intenção de lucro ou vantagem, reproduzirem os símbolos oficiais de titularidade da Fifa. Isso significa, repito, a criminalização de uma tradição brasileira em época de Copa do Mundo, que é a pintura de muros e das próprias ruas, com os símbolos do evento esportivo.
O desrespeito ao estatuto do torcedor, que representou grande avanço para os espectadores de eventos esportivos, é um grave retrocesso, que pode se repetir, por exemplo, nas Olimpíadas e trazer questionamentos quanto à sua seriedade.
Nos últimos tempos, o Brasil tem presenciado justa revolta de torcedores com a permanência na condução da Confederação Brasileira de Futebol do senhor Ricardo Teixeira. Não sei há quanto tempo este senhor manda no futebol brasileiro, mas sei que o povo brasileiro elegeu para governar o país a senhora Dilma Rousseff.
E a Fifa quer mais. Ameaça realizar a Copa do Mundo em outro país, caso a Lei Geral não seja aprovada nos seus moldes, com a proibição de meia-entrada aos estudantes e aos idosos e a exclusividade total na distribuição das imagens dos eventos, sem qualquer tipo de contrapartida.
Não é admissível que a presidenta, com a autorização do Congresso Nacional, entregue a gerência de parte de nosso país a uma entidade de direito privado, quase sempre associada a escândalos e, de sobra, à sua congênere brasileira. Ou seja: o controle do evento, das vias públicas, da possível penalização de brasileiros que patrioticamente pintarem seus muros em apoio à seleção canarinho, comércio nas vias públicas, dentre outras atribuições, ficarão sob a brilhante responsabilidade de Ricardo Teixeira.
A Copa do Mundo 2014 já começou e o primeiro jogo do Brasil é contra a Fifa.

Randolfe Rodrigues é senador da República, historiador, bacharel em Direito e Mestre em Políticas Públicas

Artigo do Senador Randolfe Rodrigues, publicado nesta segunda-feira(17) de outubro no site do Congresso em Foco.

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