terça-feira, 25 de outubro de 2011

Saulo Ramos

Erro crasso

...Licínius Crasso reuniu 50 mil soldados, sete legiões, confiou na superioridade numérica de suas tropas e, sem nenhum cuidado tático ou militar, cortou caminho por um vale estreito para destruir os inimigos. Mas estes estavam em menor número, precisamente nas saídas dos vales e dizimaram os soldados romanos. Mataram todos, inclusive Crasso. A bobagem de Marco Licínius virou, em várias línguas, sinônimo de estupidez, de erro fatal, que em português se diz até hoje "erro crasso".
Lembro-me da origem histórica da expressão porque fiquei sabendo por um colega, advogado maranhense, a quem muito prezo, que a secção estadual da OAB pretende mover uma ação direta de inconstitucionalidade contra lei que instituiu fundação pública e homenageou como patrono o senador José Sarney, nos seguintes termos: 

Art. 1º Fica o Poder Executivo autorizado a instituir a Fundação da Memória Republicana Brasileira, com personalidade jurídica de direito público e duração ilimitada, com sede e foro na cidade de São Luís e jurisdição em todo o Estado do Maranhão, sem finalidade lucrativa, dotada de autonomia administrativa e financeira, e de patrimônio próprio, vinculada à Secretaria de Estado da Educação.
§ 1º A Fundação criada em decorrência desta Lei tem como Patrono o intelectual e político maranhense José Sarney, ex-governador do Maranhão, membro da Academia Brasileira de Letras e ex-presidente da República Federativa do Brasil. 

Segundo fui informado, a OAB de São Luís pretende argüir de inconstitucional esse diploma legal com fundamento no princípio da impessoalidade previsto no art. 37, da Constituição Federal. Na verdade, não é propriamente a OAB maranhense, que reúne tantos e cultos advogados, a responsável pela convocação das sete legiões romanas. Quem está ressuscitando Marcos Licínius Crasso é precisamente o presidente de estudos constitucionais da instituição local, o Dr. Rodrigo Lago, filho do ilustre político Anderson Lago, que deixou-se dominar pelo velho ódio de tertúlias partidárias locais e passou a sofrer a cegueira própria da desastrosa paixão política.
A OAB, secção estadual, não tem competência legal para propor ação de inconstitucionalidade. Nos estudos constitucionais, fica-se sabendo disso simplesmente pela leitura do art. 103, VII, da Constituição. Somente o Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil pode propor ação direta de inconstitucionalidade.
Os mesmos estudos constitucionais ensinam que o princípio da impessoalidade se aplica à administração pública e aos atos de seus agentes no exercício de suas funções, que devem ser voltadas para o bem público e não para o interesse pessoal do administrador.
A lei que outorga o nome de alguém a uma instituição pública, de finalidade cultural e não lucrativa, não está praticando ato administrativo e, sim, homenageando a quem entendeu distinguir pelos seus méritos ou pelos serviços já prestados à comunidade sobre a qual tenha jurisdição o legislador que editou a lei para homenageá-lo.
Além da inaplicabilidade daquele preceito constitucional ao caso concreto, os advogados da OAB de São Luís devem saber (claro que sabem) que existe lei federal autorizando precisamente a outorga de título de patrono ou patrona a pessoas escolhidas como figura tutelar de variadíssimas instituições públicas. Para quem não a conhece tomo a liberdade de informar: é a Lei no 12.458, de 26 de julho de 2011, que diz:
Art. 1º O título de patrono ou patrona, outorgado por lei, destina-se à pessoa escolhida como figura tutelar:
I - de força armada, arma ou unidade militar;
II - de classe profissional;
III - de ramo do conhecimento, das artes, das letras ou da ciência;
IV - de academia ou instituição congênere;
V - de movimento social;
VI - de evento cultural, científico ou de interesse nacional.
Parágrafo único. O patrono ou patrona de determinada categoria será escolhido entre brasileiros, vivos ou mortos, que se tenham distinguido por excepcional contribuição ou demonstrado especial dedicação ao segmento para o qual sua atuação servirá de paradigma.
Art. 2º A outorga do título de patrono ou patrona é homenagem cívica a ser sugerida em projeto de lei específico, em que constará a justificativa fundamentada da escolha do nome indicado.
Art. 3º O título de patrono ou patrona tem valor exclusivamente simbólico, não implicando benefício material de qualquer natureza ao homenageado ou a seus sucessores.
Art. 4º Esta Lei entra em vigor na data de sua publicação.
Brasília, 26 de julho de 2011; 190º da Independência e 123º da República.

A lei 12.458/11, publicada no DOU em 27 julho deste ano, mereceu de Miguel Matos, diretor do Migalhas, a seguinte apresentação: "estabelece critérios mínimos para a outorga do título de patrono ou patrona. Pela norma, o patrono ou patrona será escolhido entre brasileiros que se tenham distinguido por "excepcional contribuição" ou demonstrado "especial dedicação" ao segmento para o qual sua atuação servirá de paradigma."
Os demais critérios podem ser estabelecidos pelo ato legal que outorgar a honraria, porque a lei que autoriza fixou critérios mínimos.
No caso, trata-se de um dos mais ilustres filhos do Maranhão e que prestou não apenas à sua terra natal os mais relevantes serviços de alta importância história, política, social, literária e humana ao Brasil. Escritor consagrado, poeta renomado, membro da Academia Brasileira de Letras, com obras traduzidas em várias línguas e publicadas em diversos países. E além dessa transcendental biografia, foi a figura de maior importância na reconquista da democracia no nosso país e na implantação do atual Estado de Direito em que vivemos.
Na convocação da Constituinte, deu ao Brasil a Carta Magna onde estão consagrados, além do preceito da impessoalidade na administração, os princípios das liberdades públicas, da livre manifestação do pensamento, da plena liberdade de expressão, da elevação da advocacia pública e privada ao nível constitucional, o que nós advogados devemos reverenciar para todo o sempre. Leiam o art. 133 da Constituição: "O advogado é indispensável à administração da justiça, sendo inviolável por seus atos e manifestações no exercício da profissão, nos limites da lei." Foi o então presidente Sarney que, por sua bancada na Constituinte, mandou inserir esse princípio na Constituição da República Federativa do Brasil. Eu estava lá. Eu vi.
Creio que a OAB de São Luís não dará seguimento a esse erro comparável ao de Marco Licínius Crasso e seus membros deixarão suas preferências políticas para as campanhas eleitorais e suas legítimas lutas partidárias, para o momento certo no terreno em que legalmente devam ser travadas, jamais nos vales e despenhadeiros do ódio pessoal contra um homem a quem o Maranhão, o Brasil e os próprios advogados devem muito.
Finalmente, ao examinar a lei estadual, verifiquei que a Fundação Estadual terá um Conselho Diretor, com integrantes da família Sarney, e que ficará com todo o acervo da fundação atual, de direito privado, que leva o nome do ex-presidente da República. Um gesto simpático e generoso do legislador estadual. Naquele acervo, há uma fotografia minha, que fui ministro da Justiça do Governo Sarney. Desde já autorizo ao futuro conselho a jogá-la fora para que os meus colegas da OAB do Maranhão, a quem prezo sinceramente, não se irritem com ela depois de ler este artigo.

Saulo Ramos  é jurista, ex-ministro da Justiça

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