quarta-feira, 3 de setembro de 2014

José Sarney: “A Sé de Braga”

É velha a discussão sobre desenvolvimento econômico e desenvolvimento social. Aqui e acolá ela emerge das salas fechadas para a grande mídia. Nenhum mágico é capaz de unificar pontos de vista de tão grande carga ideológica. Afinal, não é saber quem veio primeiro, mas o que deve ser comido primeiro: o ovo ou a galinha. Outra pergunta que está implícita nesse debate é sobre se seriam antagônicos e excludentes os elementos dessa dualidade, se não é possível os dois caminharem juntos. No fundo da divergência está a questão de prioridade, se há uma lei de precedência que, violada, pode comprometer o essencial. É a tal teoria da repartição do bolo. A palavra desenvolvimento entrou com toda a força no cotidiano da retórica política na década de 50, como uma corrente de pensamento que o considerava um objetivo social. Basicamente, o desenvolvimento está vinculado à intervenção do Estado na economia. Juscelino concentrou sua visão de desenvolvimentismo num programa de metas. Geisel, na substituição de importações e na implantação de uma grande indústria de base. Depois, dentro dessa visão, a teoria do desenvolvimento ficou anacrônica, na contramão do neoliberalismo, do mercado, o deus da modernidade. Coube ao grupo da Bossa Nova da UDN, em 1958, romper com a pregação clássica do partido e aderir à teoria do desenvolvimento, condicionando-o à “justiça social”. Foi esta bandeira, aliada ao combate à corrupção e ao carisma pessoal, que deu a vitória a Jânio Quadros, em 1960. Juscelino, o profeta do desenvolvimentismo, era derrotado pela ausência de uma política social, concentrado que estava no econômico e prisioneiro de lideranças demagógicas e populistas que quase levaram o Brasil à guerra civil e se transformaram em motivação para os 20 anos de governo autoritário. Hoje, basicamente, dentro de um cenário diferente, as mesmas questões se renovam. O alto índice de desemprego, os baixos indicadores sociais, o nível dos salários, a estagnação econômica levam a questionar o modelo proposto pelo FMI. A questão central era bem mais complexa. O objetivo do neoliberalismo, destruir o Estado de bem-estar, responsabilizado por ser o responsável pela distorção das leis de mercado. Alegavam que os custos sociais prejudicavam a economia. A grande contradição é justamente o fato de que o Estado de bem-estar, o “wellfare state”, foi uma grande criação e conquista do capitalismo, que com ele enfrentou o comunismo, mostrando que era capaz de promover melhores condições de vida aos mais pobres do que aquele. O desmonte do Estado social de Direito é uma das tragédias do nosso tempo. As sociedades se movem com grande lentidão. O messianismo não engana mais ninguém. Não há mais o milagre dos salvadores e o apelo à revolução. Mas há o sentimento inato no destino da humanidade, barro dos visionários, santos, heróis, pensadores e estadistas: a de que o mundo jamais poderá prescindir da justiça. E o mundo não poderá jamais construir seu futuro na injustiça de que os pobres atrapalham o desempenho dos ricos. Essa é uma questão tão velha quanto a Sé de Braga, como dizem os portugueses ou os que querem baixar o preço dos remédios.


(Publicado na edição de 1º de setembro do Diário do Amapá)
José Sarney foi governador, deputado e senador pelo Maranhão, presidente da República, senador do Amapá, presidente do Senado Federal. Tudo isso, sempre eleito. São mais de 55 anos de vida pública. É também acadêmico da Academia Brasileira de Letras (desde 1981) e da Academia das Ciências de Lisboa. jose-sarney@uol.com.br   

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