quinta-feira, 22 de setembro de 2011

Randolfe Rodrigues

Chegou a hora de o Amapá ser visto pela porta da frente do Brasil

“Tu és Amapá, o polo térmico da América
Saldo do Sol que recriou o mundo.
Teus risos e a tua calha de Amazonas
Talham fontes e cântaros abertos
Muito mais densos que o suor dos homens
E a sede dos desertos.”

Álvaro da Cunha

Na data magna de nossa terra, 13 de setembro, conforme estabelece o art. 355 da Constituição Estadual, o Amapá celebrou em 2011 o 68º aniversário de sua separação do estado do Pará e constituição como Território Federal. Mas essa história vem de outras datas. Antes mesmo da chegada dos brancos europeus, as terras da margem esquerda do estuário do Amazonas já eram ocupadas por Tapuiaçus, Marigus e Tucujus, todos pertencentes aos grupos indígenas dos Aruaques, Caraíbas e Tupis-Guaranis. A celebração que hoje fazemos é também derivada dessa origem comum dos povos indígenas. A melhor maneira de comemorar esta data é beber na fonte da história.
Yamapaba, como era chamada pelos índios tucujus, o lugar da chuva, viveu experiências distintas nos últimos séculos decorrentes de suas singularidades: a disputa por essas terras entre os estados europeus no século XVII, a consolidação da ocupação portuguesa no século XVIII com as experiências urbanas da Vila Vistosa da Madre de Deus, Vila de Mazagão e Vila de São José de Macapá, antiga Estância das Bacabas.
O Amapá é um canto de Brasil que se tornou Brasil pela vontade de ser brasileiro. No nosso lugar, a história produziu fortes e contrafortes. Homens e mulheres com audácia inovadora forjaram sentimentos e emoções. Antes mesmo da chegada dos portugueses, a epopeica aventura de Yáñez Pinzón denominava o nosso grande rio de Mar Del Agua Dulce. Hoje, sabemos que a água doce do Amazonas se estende por cerca de 320 quilômetros mar adentro. Os reflexos do nosso rio chegam até a Flórida – EUA.
Christoval de Acuna, padre jesuíta do século XVI, um dos primeiros a explorar a região do Amapá, assim definiu as nossas terras para o Rei da Espanha: “As terras da Capitania do Cabo Norte, além de serem elas sós maiores que toda a Espanha junta e haver nelas muitas notícias de minas, têm pela maior parte o solo mais fértil e está para dar maiores proveitos e melhores frutos do que quantos há neste imenso rio das Amazonas.”
A imprecisão de Tordesilhas e a determinação das outras nações europeias em questionar este tratado, como é assinalado na célebre expressão de Francisco I, Rei da França, de que queria ver o testamento de Adão que disse que o mundo está dividido entre Espanha e Portugal, são as razões que levam às disputas dos séculos XVI e XVII. O Amapá foi reclamado por espanhóis, foi objeto da cobiça de ingleses e holandeses, foi disputado por franceses e portugueses, sob o triunfo desses últimos, a partir dos termos do Tratado de Utrecht, que fixa no rio Yapoco ou Vicente Yáñez Pinzón, a fronteira entre as terras da França e de Portugal na América.
A imprecisão de qual era esse rio levou a uma polêmica de duzentos anos. Os portugueses triunfam e iniciam o período colonizatório com a concessão da Capitania do Cabo Norte a Bento Maciel Parente, Governador do Maranhão e Grão-Pará. As terras do Amapá são delimitadas pela primeira vez e partem do Oiapoque até o rio Paru. É no período pombalino, sob o governo de Fancisco Xavier de Mendonça Furtado, que se consolida a ocupação portuguesa na região. É importante aqui destacar que a nossa terra é também templo das fortificações: a Cumaú, dos ingleses e holandeses; as de Maiacari, de Araguari e de Macari; e a maior obra do império colonial português no mundo, a Fortaleza de São José de Macapá.
No século XIX, o Tratado de Paris, de 1817, levanta a polêmica ao art. 7º do Tratado de Utrecht, sobre qual seria o rio Vicente Yáñez Pinzón. Surge, então, a região do Contestado entre os rios Oiapoque e Araguari. Vivemos no século XIX as experiências da corrida do ouro e de uma república independente em nosso território, a República do Canani. É o século em que, de fato, nós nos forjamos brasileiros. Foi aí que triunfou a vontade da sociedade amapaense em ser brasileira. Afinal, a sociedade sempre acaba vencendo, mesmo ante a inércia e o antagonismo do Estado.
O Estado era Tordesilhas, rebelada. A sociedade empurrou as fronteiras do Brasil, criando uma das maiores geografias do mundo. O Estado, encarnado na metrópole, resignara-se ante a invasão holandesa no Nordeste. A sociedade restaurou a nossa integridade territorial com a insurreição nativa de Guararapes e Tabocas, sob a liderança de André Vidal de Negreiros, Felipe Camarão e João Fernandes Vieira, que cunhou a frase da preeminência da sociedade sobre o Estado: “Desobedecer a El-Rei, para servir a El-Rei”.
O Estado capitulou na entrega do Acre, e a sociedade retomou sob as foices e os machados de Plácido de Castro e seus seringueiros. O Estado fraquejou sobre os corsários franceses capitaneados pelo Capitão Lunier. A sociedade recuperou o Amapá para o Brasil com os punhos de Veiga Cabral e com o sangue de idosos, mulheres e crianças da vila do Espírito Santo do Amapá que baixaram a bandeira francesa e ergueram o pavilhão nacional.
No século XX, veio o estabelecimento da infraestrutura estatal com a instituição do território por obra do Decreto-Lei do Governo Vargas e, quarenta e cinco anos depois, com a criação do estado. Essa obra seria impossível sem a determinação inaugural de um homem, o capitão Janary Gentil Nunes, primeiro governador, e também de pioneiros como Julião Ramos. Dessa aliança entre Janary, Julião e muitos outros, surge a mística do Amapá, assim definida pelo capitão Janary:
“A mística do Amapá é o ideal de tornar o Território uma das regiões mais ricas e felizes do Brasil. (…) Cada sonho, cada esperança, cada luta, vividos para torná-la mais próspera, emprestaram-lhe força e brilho. Ela resume os anseios mais nobres de quantos batalharam para integrar o Amapá na Pátria Brasileira. (…) O Amapá fascina. E por isso possui a sua mística. Não há ninguém que penetrando suas fronteiras – desde as margens dos rios até as fraldas do mássico das Guianas (…) Não há ninguém que não sinta essa fascinação que se irradia do ambiente e não termina cativo do seu destino. (…) Avante, pois, amigos! O futuro tem um lugar de destaque à espera do Amapá, terra onde tudo começa. E vós o conquistareis.”
As gerações que nos antecederam nos mandaram executar um serviço. É nosso dever fazê-lo com amor, aplicação e sem medo. Chegamos à condição de Unidade Federada da República Brasileira. Enfrentamos o desafio do enorme salto demográfico da última década do século passado e nos tornamos o mais brasileiro dentre os estados brasileiros. Mais de dois terços de nosso povo são imigrantes ou filhos de imigrantes. Lutamos para ser brasileiros. Falta ao Brasil nos reconhecer.
Ao longo dos últimos 20 anos, fomos vítimas de uma injusta fórmula federativa que nos usurpou pelo menos R$ 6 bilhões. Essa injustiça já foi reconhecida pela Suprema Corte brasileira. Cabe, agora, por parte do Congresso Nacional, aprovar uma nova e justa forma de partilha do Fundo de Participação dos Estados.
Amapá, em poucos cantos do planeta o povo tem tantas razões para sentir orgulho quanto o nosso. Enquanto o mundo promove destruição ambiental, nós possuímos mais de noventa por cento do nosso território preservado. Nosso endereço é o mais fácil: a esquina do rio mais belo com a linha do Equador. Forjamos um povo diverso, miscigenado, misturado e acolhedor, que todo dia recebe gente de todos os cantos com carinho e com amor.
Somos terra de poetas; impossível não sê-lo com as belezas que temos. Um deles, certa vez, exclamou: “A lua minguante do Amapá brilha mais que a lua cheia de qualquer outro lugar”. O Brasil, já dizia Álvaro da Cunha, não sabe nem o quanto é grande o rio Amapá pequeno, e o rio Cupixizinho não iria também fazer por menos, mas sei, Amapá, nós dois sabemos, os rios que somos, os rios que vivemos. É chegado o momento de o Amapá ser visto pelo Brasil, não mais pela porta dos fundos, mas, a partir de agora, pela porta da frente.

Randolfe Rodrigues é licenciado em História, graduado em Direito, mestre em Políticas Públicas, professor universitário e senador da República pelo PSOL do Amapá.

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