O argumento principal para a mudança da capital para Brasília era a atmosfera irrespirável do Rio de Janeiro, centro do caldeirão em que ferviam pressões de toda ordem, que vulneravam o poder e imobilizavam decisões. O argumento histórico do centro geográfico do país, da marcha para o interior do Brasil esquecido do Planalto, cedia lugar à evidência de que era impossível governar do Rio. Juntava-se o mau humor com o tráfego (sem tráfico), agitações de rua e uma indefesa localização dos edifícios-símbolo do poder, leia-se Catete, Laranjeiras etc. Sussurrava-se, como motivo oculto, livrar-se o governo da Vila Militar, tão presente na história do país. "A Vila vai descer", temor dos presidentes. A meu ver, havia outro motivo bem mais pessoal e circunstancial que deu a Juscelino a energia com que marchou para a mudança: a necessidade de fuga. Fustigado por Carlos Lacerda e nossa UDN, por grupos que vinham da República do Galeão, deu uma de d. João 6º: fugir para o Brasil. Era hora de fugir para Goiás e, assim, sair do caldeirão das ameaças institucionais. Pregava-se um regime de exceção por dois anos. Surgiam as revoltas de Jacareacanga e Aragarças e a UNE ao lado do Catete. Juscelino mudou-se. Talvez, se tivesse ficado no Rio, haveria o perigo de deposição, renúncia ou suicídio, rotina histórica. Mas os problemas emigraram da costa para o centro. Anchieta falava de uma marcha em que os índios correram. Ele pediu: "Parem! Vocês deixaram a alma para trás. Parem, vamos esperar que ela chegue." Brasília foi assim. Andou depressa; e a alma das pressões chegou e transformou a cidade num centro ideal para que elas se exerçam. O que existia no Rio veio em dobro. Basta ter um apoio logístico e a sedução de um passeio, uma causa (que necessariamente não precisa ser boa) e todos os caminhos convergem para um corredor: a Esplanada dos Ministérios, que desemboca na praça dos Três Poderes, o altar dos deuses. Os manifestantes voltam para casa com a sensação do dever cumprido e a felicidade de ter visto e desafiado o monstro: o Poder. O Brasil nos últimos 15 anos tem exercitado e talvez esgotado toda a sua capacidade de confrontação. Vivemos numa panela de pressão com enfrentamentos sucessivos e cotidianos. Não se vislumbra um espaço ao entendimento. Esgarça-se a disposição para dialogar e perpassa um pessimismo geral. Fizemos a República sem povo e, hoje, achamos que podemos fazer povo sem a república, política sem políticos, o futuro sem o passado. Tudo é ruptura, é confronto, é divergência, é luta, é desintegração. A casa está muito dividida, mas não é hora de esticar a corda. Existe grande insatisfação, mas nenhum apoio do povo a qualquer golpe. Esse slogan de "fora, renúncia e impeachment" é primário e populista. É preciso o Brasil ter um espaço para restaurar a paz e a convivência. Sair dos passos vazios do corredor da Esplanada e buscar o bom senso.
José Sarney foi governador, deputado e senador pelo Maranhão, presidente da República, senador do Amapá por três mandatos consecutivos, presidente do Senado Federal por três vezes. Tudo isso, sempre eleito. São 55 anos de vida pública. É também acadêmico da Academia Brasileira de Letras (desde 1981) e da Academia das Ciências de Lisboa.
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