Os odores do Haiti
O Haiti é um país sofrido. Nem por isso sua história é menos heróica e exemplo de momentos de glória. Alguns que podem ser inseridos na grande lista da construção da liberdade no mundo. Foi o Haiti o primeiro país em que os pretos se rebelaram contra a escravidão, com Louverture e Dessalines, e eles próprios decretaram seu direito de viver livremente, ao fundar em 1804 a primeira república negra do mundo. Isto custou-lhe uma dívida de sofrimento que atravessou séculos e até hoje é tida como a grande pedra na construção de sua pobreza.
A revanche dos países coloniais foi brutal. Li há alguns anos um livro que teve grande sucesso. Foi Colapso, de Jared Diamond, que tenta explicar a riqueza e a pobreza de alguns países. Um dos capítulos trata do Haiti e da República Dominicana. Ele demonstra que a exploração predatória da cana a partir do século 16 devastou as florestas do Haiti, destruindo seu solo, rios, fertilidade e criando todos os ingredientes de uma pobreza impossível de ser banida. Já a República Dominicana, ao seu lado, conservou suas florestas e direcionou sua economia para outros rumos. E o Haiti passou a ser um exemplo de exploração, de desertificação, de miséria e de problemas políticos, submetido à dominação espanhola, à francesa, à americana e atualmente não se sabe quem, porque nem seu povo tem condições de dominá-lo.
Para dar-se um exemplo de sua exploração citemos o fato de que o Haiti era responsável por um terço da receita francesa no século 18 e depois da revolta dos escravos teve de pagar uma indenização que, transformada em valores de hoje, valeria 22 bilhões de euros. Assim, construiu-se sua inviabilidade. Não tem árvores, não tem nenhuma condição de sobrevivência. Pois é nesse lugar, o mais pobre entre os pobres, que o destino escolhe para a maior tragédia das Américas. Todos se sentem culpados e todos querem ajudar. Mas ninguém sabe como fazer ou começar. Faltam água, alimentos e todas as condições mínimas para viver. Mas os que lá estão na mais humanitária das tarefas falam sobretudo nos odores do Haiti.
O cheiro da pobreza, do lixo, dos cadáveres insepultos, inchados e em decomposição — a mistura de todos esses odores, o odor da morte. É esse que asfixia todos que ali estão. A cidade é toda desespero. Mas é nesse ambiente que repórteres relatam o pedido de uma mãe com dois filhos: que lhe ajudem a sepultar o marido e os outros filhos que estão mortos na casa desmoronada. Pergunta-se a uma das meninas sobreviventes em que está pensando. Ela responde: “Em voltar ao colégio.” É que o cheiro da morte não mata o perfume da esperança, que não morre nunca.
José Sarney foi governador, deputado e senador pelo Maranhão, presidente da República, senador do Amapá por três mandatos consecutivos, presidente do Senado Federal por três vezes. Tudo isso, sempre eleito. São 55 anos de vida pública. É também acadêmico da Academia Brasileira de Letras (desde 1981) e da Academia das Ciências de Lisboa
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