"A roupa nova dos meios de comunicação". É o título de artigo do presidente José Sarney, publicado hoje pelo jornal espanhol, El País, um dos 10 maiores do mundo. O presidente do Senado escreve sobre mudanças provocadas pela comunicação em tempo real – democratizada pelos meios digitais. Cada vez mais, os meios de comunicação fazem a interlocução entre governo e população, esvaziando o papel de intermediário, reservado às instituições políticas. E indaga: "quem representa verdadeiramente o povo?" Em sua opinião, há um novo interlocutor difuso em meio a toda parafernália eletrônica que oferece muitas verdades. Tantas que, muitas vezes, não se sabe aonde a verdade se encontra. "Contra o que os meios de comunicação constroem como verdade, os deputados vacilam em votar, o Governo não toma decisões e os juízes não julgam", escreve Sarney "Os Parlamentos eleitos por tempo determinado perdem legitimidade confrontados com os meios de comunicação em tempo real, que dão conhecimento ao povo de tudo o que ocorre: julga, opina e condena... É evidente e clara a nova face da disputa entre os meios de comunicação e os Parlamentos", continua o presidente do Senado.
Segue abaixo o artigo em português:
Mídia de roupa nova
Quando o povo inglês quis participar das decisões de governo e criou o embrião da democracia representativa visava defender o seu bolso dos altos impostos. Era o tempo do Rei João e do nascimento dos direitos civis. Com os séculos esse processo levou à democracia e sua forma de operar através de parlamentos eleitos.
Agora as novas e fantásticas tecnologias de informação possibilitaram aos homens conhecerem em tempo real a roda do mundo. Há algo de novo debaixo do sol. As instituições políticas vivem instante de crise ao ver nascer uma dúvida sobre a necessidade de intermediários entre o povo e o governo, num ataque frontal à democracia representativa. Os parlamentos eleitos por tempo determinado perdem legitimidade em confronto com a mídia em tempo real que dá conhecimento ao povo de tudo que acontece: julga, opina e condena. Os representantes eleitos não sabem mais por quem foram votados e os eleitores em quem votaram.
É evidente e clara essa nova face de disputa entre mídia e parlamentos. Aquela traz diariamente o que ocorre, o que o povo diz e pensa, enquanto os parlamentos têm suas fraturas expostas sem piedade. A pergunta que surge é quem verdadeiramente representa o povo: a mídia, na sua amplitude dominante, com sua bagagem de conhecimento do cotidiano em todas as suas facetas, ou as instituições legislativas que têm mandatos fixos diluídos no tempo. Nasceu um novo interlocutor da sociedade democrática: a opinião pública, que embora existisse difusa, foi capturada pelas novas tecnologias de informação. Contra ela ou sem seu apoio, nenhum dos aparatos governamentais decide livremente. Nada mais se faz à sua revelia. Os jornais, as televisões, os blogs, o twitter, o you tube e toda a parafernália deste universo sem barreiras e incontrolável que é o mundo da internet oferecem aos cidadãos suas verdades. Estas são tantas que, às vezes, não se sabe onde ela está. Vem a nossa cabeça a opinião de Dom Miguel de Unamuno de que a pergunta mais profunda do Novo Testamento é a de Pilatos: "O que é a verdade?"
Esse novo mundo transformado atinge os poderes clássicos: o parlamentar, o executivo e o judiciário. Contra o que a mídia formou como verdade deputados vacilam em votar, o governo não toma decisões, juizes não julgam. Nessa nova paisagem os grupos de pressão que atuam dentro da sociedade agregam para si poder de representação, legitimados pela disponibilidade de intermediação do que pensa o povo. As ONGS, a sociedade civil organizada, os grupos religiosos e todos os instrumentos que atuam nesse campo tornam-se cada vez mais influentes e poderosos, invocando legitimidade política. Os partidos, que no passado funcionavam como o caminho de passagem para divulgar e recolher ideias, vão ficando superados. Movimentos como o M-15 e o dos indignados surgem na outra vertente, das superadas concentrações de massa que foram da revolução francesa à primeira metade do século passado.
O grande desafio é como construir uma estrutura capaz de substituir esse velho arcabouço que está sob sítio. Pelo sistema representativo os parlamentos são eleitos por tempo determinado. Com a morte das ideologias e a nova sociedade, a eleição parlamentar é o resultado do momento em que se realiza e uma conjugação de fatores de mobilização: dinheiro ou prestígio da máquina governamental, isto é, poder econômico ou político. As doutrinas, as utopias, as ideologias e as próprias ideias não estão mais no centro do debate eleitoral. São causas colaterais. É o mundo da política de realidades sem abstrações. A velocidade dos fatos comprime o tempo, testemunha as mudanças permanentes, a emergência de problemas que nem sequer fizeram parte da plataforma eleitoral, e as eleições, o momento fundamental da constituição da legitimidade, tornam-se tão distantes que se desfaz a matriz da representatividade. Assim, os parlamentos envelhecem e perdem substância. Nesse embate, a mídia em tempo real ganha espaço como porta voz do que acontece. Essa realidade é um processo que devora os parlamentos. Daí o desprestígio da instituição parlamentar no mundo inteiro, que vive uma crise de credibilidade e impotência para dar resposta aos problemas que surgem.
A internet, por outro lado, dá a cada cidadão o direito de opinar, contestar ou aplaudir qualquer decisão ou destruir lideranças. Os impulsos propagam-se numa velocidade vertiginosa, sem tempo para reflexão, numa nova forma de expansão de ideias ou reações que estão muito próximas dos instintos, e que surgem e desaparecem sem uma explicação convincente.
Voltamos à pergunta: quem na realidade tem mais legitimidade para representar o povo? A instituição parlamentar, que envelheceu, ou a mídia que fala em nome do povo, através dos meios de comunicação em tempo real? Parlamento e mídia, nessa realidade, estão em dilacerante competição, cujo ganhador já se sabe. O alvo fácil da mídia é vulnerável pelas suas notórias fragilidades, que vão desde as acusações de inoperância, vantagens e mordomias, corrupção e todas as mazelas que lhe são atribuídas até a imagem negativa de suas dilacerações internas.
Neste quadro, qual o caminho? Podemos responder com os versos do poeta português, José Régio: "Não sei por onde vou, / Não sei para onde vou. / Sei que não vou por aí!"
Vislumbra-se um cheiro de democracia direta. E a estrada do mundo volta ao princípio, com os gregos. Já Irwin Jacobs, um dos pioneiros dos celulares, mostra até onde chegamos, ao dizer que eles são "a extensão de nossos cérebros". Será por eles que iremos votar? É demais para nosso gosto.
Secretaria de Imprensa da Presidência do Senado
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