Por Said Barbosa Dib*
Há hoje um péssimo hábito de alguns jornalistas e políticos menores em atacar o senador Sarney como trampolim para se promoverem. Toda vez que algum anódino precisa repercutir o próprio “trabalho” é batata: lasca as patas no ex-presidente. Apesar do inconveniente da chateação, o fenômeno apenas comprova a força de quem tem história, de quem foi governador, deputado e senador pelo Maranhão, presidente da República, senador do Amapá por três mandatos consecutivos, presidente do Senado Federal por três vezes. São 55 anos de vida pública, sempre eleito.
O mais recente caso de oportunismo é o de Luiz Cláudio Cunha, jornalista com longa carreira em vários órgãos de imprensa, premiado por diversas vezes, mas que ultimamente se encontra implorando espaço em pequenos sites. Para sair do esquecimento resolveu escrever artigo publicado dia 26, no site Congresso em Foco, intitulado “Sarney e o torturador, Ustra e o presidente”. Puro parasitismo político. Marcelo Tognozzi, jornalista e secretário de imprensa da Presidência do Senado, educadamente contestou as informações irresponsáveis contidas no artigo. Mostrou que Sarney nunca foi camarada do coronel Ustra e que jamais manteve com ele qualquer vínculo de amizade. E que sempre teve, sim, relações de amizade com notórios perseguidos da ditadura, como Ferreira Gullar, Glauber Rocha, Renato Archer e o ex-presidente Juscelino Kubitschek. Tognozzi mostrou ainda que o próprio JK escreveu a Sarney agradecendo a forma como foi tratado por ele no Maranhão, após ser recebido com honras de ex-chefe de estado no dia 11 de dezembro de 1968, dois dias antes da edição do AI-5. E que, em 1967, o general Dilermando Gomes Monteiro já acusava Sarney de “proteger comunistas”, conforme documentos da 10ª Região Militar levantados pela jornalista Regina Echeverria. Portanto, “Sarney, como mostram os fatos, esteve sempre do lado oposto ao dos torturadores”, diz a nota de Tognozzi.
Erros históricos de um “jornalista investigativo”
Em tréplica raivosa aos esclarecimentos da assessoria de imprensa da Presidência do Senado, Luiz Cláudio Cunha insistiu. E conseguiu falar mais tolices do que havia dito no artigo. Entre sofismas, chavões e reducionismos históricos flagrantes, chegou mesmo a afirmar que Sarney não teria sido eleito para o governo do Maranhão, mas nomeado pelos militares: “o político de absoluta confiança do regime militar – ao ponto de ser nomeado governador do Maranhão num tempo em que o povo era impedido de votar (...)”. Uma grande bobagem que mostra o desespero em que se encontra o ex-grande jornalista e que desqualifica não apenas o artigo recente, mas toda a história de Luis Cláudio, pois é muito estranho um jornalista investigativo premiado não conferir informações tão óbvias. Sarney foi, sim, candidato da coligação da UDN com o Partido Social Progressista (PSP), apoiado pelos setores mais progressistas de então. Conquistou o governo do Maranhão em outubro de 1965, numa votação inédita na história do estado: 121.062 votos, o dobro do segundo colocado, Antônio Eusébio da Costa Rodrigues, do PDC, apoiado pelo governador pessedista, Newton Belo. O sucesso veio porque Sarney conseguiu aglutinar os adversários do “vitorinismo”. Em particular, os remanescentes das associações de lavradores e trabalhadores agrícolas, entidades que haviam sido fechadas e seus principais líderes presos em virtude do movimento militar de março de 1964. Com eles, Sarney conseguiu desmontar, em nível local, os esquemas de controle do voto dos pessedistas. Percorrendo inúmeros povoados, fazendo contatos e estimulando debates, os trabalhadores rurais apoiaram integralmente a candidatura Sarney, que recebeu também o apoio de importantes personalidades dos setores mais progressistas do Brasil, como o cineasta Glauber Rocha. O ícone do “Cinema Novo” fez questão, inclusive, de fazer filme promocional para a candidatura Sarney.
Sofismas e generalizações irresponsáveis
Cláudio também errou feio ao afirmar que, apenas pelo fato de Sarney ter pertencido à ARENA, teria sido necessariamente “esteio da ditadura" e a favor da tortura. Simplismo gritante. E irresponsável. Seria o mesmo que afirmar que o próprio Luis Cláudio, por ter recebido diversos prêmios de transnacionais (ex: Prêmio Esso) e por ter sido destaque na revista Veja (que apoiou a regime militar), teria apoiado o arbítrio. Seria um absurdo. A verdade é que, pelas suas peculiaridades políticas conciliadoras, Sarney não diferia em nada de um Tancredo Neves ou de um Teotônio Vilela, quando o assunto é a luta pela democracia e a estabilidade do País. Este último, assim como Sarney, também participou da ARENA, mas nunca deixou de ser ícone da luta democrática. O primeiro, Tancredo, em outro contexto, a do último governo Vargas, como ministro da Justiça, chefiou o DIP, instrumento de doutrinação ideológica e de repressão à liberdade de expressão. Mas este fato também não impede que se possa afirmar que Tancredo tenha sido um batalhador sincero pela democracia no Brasil. Durante a construção de Brasília, peões candangos da Novacap foram massacrados por uma guarda especial por fazerem reivindicações trabalhistas. Foram quase cem mortos. JK era o presidente e a imprensa não pode falar nada sobre o assunto. Mas este fato também não imputa, necessariamente, ao visionário construtor de Brasília, o estigma de autoritário. Mesmo assim, Luis Cláudio poupa JK, Tancredo e Vilela, mas destila veneno contra Sarney. Por quê?
Por outro lado, não se pode esquecer que Sarney foi da ARENA por imperativo da situação política pós-64, pois, com a imposição pelo AI-2 do bipartidarismo, a participação num ou noutro dos dois partidos existentes à época não era um livre jogo de vontade, mas uma imposição. Como Sarney tinha sido da antiga UDN, partido historicamente antigetulistas e radicalmente contrário à Jango, não haveria sentido não optar, diante do arbítrio do bipartidarismo, naquele momento, pela ARENA. Isto porque, o então governador Sarney, por ter sido da ala progressista da UDN (a chamada "Bossa Nova") e por ter combatido a outra ditadura, a de Vargas (cujo aliado no Maranhão era Vitorino Freire, maior inimigo de Sarney), não tinha como ficar a favor das irresponsabilidades político-institucionais do petebista Jango. Se tinha que optar, teve que ser necessariamente pela ARENA, pois a maioria dos elementos dos antigos PSD e PTB foi para o MDB.
Por outro lado, não se pode esquecer que Sarney foi da ARENA por imperativo da situação política pós-64, pois, com a imposição pelo AI-2 do bipartidarismo, a participação num ou noutro dos dois partidos existentes à época não era um livre jogo de vontade, mas uma imposição. Como Sarney tinha sido da antiga UDN, partido historicamente antigetulistas e radicalmente contrário à Jango, não haveria sentido não optar, diante do arbítrio do bipartidarismo, naquele momento, pela ARENA. Isto porque, o então governador Sarney, por ter sido da ala progressista da UDN (a chamada "Bossa Nova") e por ter combatido a outra ditadura, a de Vargas (cujo aliado no Maranhão era Vitorino Freire, maior inimigo de Sarney), não tinha como ficar a favor das irresponsabilidades político-institucionais do petebista Jango. Se tinha que optar, teve que ser necessariamente pela ARENA, pois a maioria dos elementos dos antigos PSD e PTB foi para o MDB.
A luta de Sarney pela redemocratização começou muito antes da “Frente Liberal”
Como homem enquadrado numa esquerda dogmática e pseudo-nacionalista (porque hoje é associada à plutocracia financeira internacional e suas ONGs), Luis Cláudio simplesmente não consegue superar as construções ideológicas maniqueístas e alienantes que a "Guerra Fria" impôs aos intelectuais brasileiros do pós-guerra e que vem colocando brasileiros contra brasileiros. Construções ideológicas que até hoje impedem que se possa entender que a luta de Sarney pela redemocratização começou não com a aproximação com Tancredo, mas em plena ditadura. Não se pode esquecer que Sarney foi o único governador que protestou formalmente contra o AI-5, enquanto os outros se calaram, tendo também, por diversas vezes, feito pronunciamentos no Congresso advogando “a necessidade de retorno à normalidade democrática o quanto antes” (discurso de 1972). Ao longo do governo Geisel, Sarney tinha se manifestado reiteradas vezes em favor da política de distensão inaugurada pelo presidente. Já no início de dezembro de 1977, segundo a revista Veja, declarou-se um "otimista no processo de redemocratização". Pregou o fim da "hibernação política provocada pelos acontecimentos de 1968", pois "o desenvolvimento econômico é incompatível com o subdesenvolvimento político". Em sua opinião, a ARENA amargara os resultados de uma derrota eleitoral em novembro de 1974 porque "não soube encarnar o espírito de um país que, ao longo dos últimos dez anos, modificou-se estruturalmente, se modernizou e não suportava mais um regime de força". Em setembro de 1978, depois de uma série de pronunciamentos em apoio à abertura do regime, Sarney foi convidado pelo Presidente Geisel para convencer os arenistas sobre a importância da continuidade da distensão. O objetivo de Geisel era o apoio dos setores da ARENA, ainda influenciados por posições radicais da “Linha Dura”, a aceitarem a redemocratização planejada. Para esta tarefa, segundo o Presidente, “nada melhor do que alguém com o perfil de Sarney, conhecido por seus posicionamentos democratas”. Na qualidade de relator do projeto de reformas políticas que visava a garantia do processo de abertura “lenta, gradual e segura” de Geisel, Sarney entregou ao presidente o relatório, constando, entre outras alterações, mudanças nas medidas de emergência, a eliminação da suspensão automática dos mandatos parlamentares e a liberalização para a formação de partidos. Segundo Sarney, em relação à "ordem constitucional" o projeto restaurava o estado de direito e, em relação à "ordem política", não esgotava as "aspirações liberalizantes, nem da sociedade, nem do próprio governo". Por esse motivo, achava que o MDB não poderia deixar de apoiar o projeto, pois ele consagrava todos os seus temas de campanha nos últimos anos: o fim do AI-5, a restauração do estado de direito e a superação dos atos de exceção. Sarney recebeu dos setores mais radicais de seu próprio partido críticas violentas por isso. E com o respaldo do presidente Geisel, começou a fazer reuniões periódicas com membros da oposição. Já no governo Figueiredo, com a volta ao pluripartidarismo, Sarney foi designado pelo presidente para ampliar as negociações com as oposições e promover mudanças internas no então PDS. A idéia era obter a aceitação, pelos membros do partido, da linha política voltada para uma abertura política responsável e irreversível. Como se vê, os esforços do político maranhense pela volta à democracia não começaram com a formação da “Frente Liberal” e as negociações com Tancredo. Pelo contrário, Tancredo e Sarney se aproximaram justamente porque tinham objetivo em comum há muito tempo: a retirada do Brasil da ditadura militar. Só que um no MDB e outro numa batalha interna no próprio partido. No PDS, tão logo Sarney percebera que seus esforços dentro do partido encontravam resistências substanciais, não pensou duas vezes e passou a apoiar o que, naquele momento, parecia ser a única forma de se garantir a transição democrática: o apoio ao mineiro Tancredo Neves.
A Guerra Fria e o ensino da História: conciliação como pecado mortal
Mas, o discurso de Luis Cláudio não é apenas falta de caráter do jornalista. Tem base ideológica mais profunda. Trata-se do arcabouço teórico e do conteúdo ministrado dia-a-dia aos nossos jovens estudantes. O que se tem observado é uma hegemonia sufocante do “materialismo histórico e dialético” de Karl Marx que, como se sabe, tem como princípio maior não a valorização da noção de Estado-nação, o patriotismo ou a idéia democrática de respeito à ordem pública e à paz social, mas a noção de “luta de classes” e o que seria uma pretensa fraternidade internacionalista “proveitosa” para o “proletariado expropriado de todo o mundo”, vendo na democracia representativa um “anacronismo burguês”. Assim, quando se analisa historicamente a capacidade política da elite brasileira em administrar conflitos, num mundo saturado de revoluções, guerras, carnificinas e ódios, coloca-se a idéia de “conciliação”, sempre e a priori, como um elemento necessariamente negativo, pois seria contra o velho princípio marxista do “quando pior melhor” para que a “revolução” e “a emancipação dos trabalhadores” fossem viabilizados. Pela concepção marxista da História o certo é “botar fogo na fogueira” para se viabilizar as “rupturas estruturais”. Tais concepções, hoje, infelizmente são hegemônicas nos manuais didáticos, tanto do Ensino Fundamental quanto do Médio. Se algum professor se atrever em falar de pacto social, de consenso ou ousar destacar a capacidade de conciliação e patriotismo de figuras históricas como Rui Barbosa, D. Pedro II ou Joaquim Nabuco, como algo muito proveitoso para a nação, logo será jogado na fogueira ardente do repúdio ideológico. Não se admite que tal característica tenha sido muito importante para que mantivéssemos nossa integridade territorial, a consolidação do Estado brasileiro e para que não nos tornássemos um mísero Paraguai. Da mesma forma, não se considera a importância da capacidade de um líder como Sarney de administrar a situação explosiva em que a nação se encontrava no momento da transição democrática, quando ainda havia extremismos tanto à esquerda (revanchismo dos esquerdistas) quanto à direita (“Linha Dura”), que poderiam inviabilizar a governabilidade de um país de dimensões continentais. Sarney, conhecido conciliador, democrata, negociador nato, é considerado “esteio da ditadura”, sem choro nem vela, talvez porque sempre foi um político que jamais se encaixou no estereótipo explosivo e irresponsável do revolucionário marxista. Segundo essa gente, Sarney teria feito uma coisa “horrível” (para eles): evitado o derramamento de sangue, o retrocesso totalitário ou a revolução.
* Said Barbosa Dib é historiador, analista político e, com muito orgulho, assessor de imprensa do senador Sarney
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