Acho
que há no Brasil um preconceito contra o leite. Gilberto Amado foi o primeiro
que me despertou para esse fato. “Jamais no meu estômago entrou uma gota de
leite”, disse-me com gosto de ironia o autor da “História da minha infância”,
numa noite fria de Nova York, em 1961, no bar do Black Stone Hotel. Alegava que
fazia mal e citava o exemplo da vaca que dava coices no bezerro, quando ele,
grande, queria mamar. “Leite é bebida de criança, adulto não deve tomar”. Disse-lhe
que era o alimento mais saudável da face da Terra e que não passava noite sem
que antes de dormir bebesse um copo de leite. Nos meus anos de vida não me
arrependo desse hábito. Lembro-me de Gilberto e do leite quando leio que na
cesta básica que iria ser distribuída aos flagelados, não teria mais leite e
sim um quilo de farinha de mandioca, para substituí-lo. Quando presidente da
República, eu criei o Programa do Leite,
e chegamos a distribuir, por dia, 8 milhões de litros. Às vezes, segundo
relatos da época, era o único alimento que era encontrado na mesa de muitas
famílias, adicionado à farinha e ao arroz. É verdade científica que a falta de
alimentação até os seis anos de idade, ou alimentação deficiente, acarreta às
crianças um dano irreparável ao desenvolvimento do cérebro, condenando-as a uma
condição subumana. O Programa do Leite foi extinto. Também muitos outros, como
Farmácia Básica, Merenda Escolar ao seu irmão de seis anos, levando-o à escola,
assistência infantil, com as recomendações da OMS e em cooperação com a
Pastoral da Infância, e muitos e muitos outros. Ora, num país de desnutrição
endêmica, de grandes bolsões de miséria, de pobreza, ninguém pense que o Estado
está desonerado de dar comida ao povo. Nos Estados Unidos, país riquíssimo, sem
os nossos males sociais, o governo fornece à população os “bônus de
alimentação”, para aqueles que são pobres. Eles os trocam por comida nos
supermercados. Aqui, esses problemas de fome vão ser resolvidos pela competição
do mercado? É fácil condenar o assistencialismo necessário, quando se está de
“barriga cheia”, como dizia Tobias Barreto no “Discurso de Manga de Camisa”.
Temos grandes problemas que desafiam o Brasil, mas o lado humano e o social não
podem ter postergação. “Tudo pelo social”, um slogan que foi ridicularizado.
Agora, todos gritam que é preciso caminhar para resolver esses problemas. Quando
submeti meu nome como candidato ao PMDB à Presidência da República,
perguntaram-me qual seria meu primeiro ato caso fosse de novo presidente.
Respondi: “Retomar o programa do leite”. Médici, visitando o Nordeste num ano
de seca, pronunciou a frase que não morreu: “O governo vai bem, mas o povo vai
mal”. Já não pesam sobre meus ombros os terríveis ódios políticos que motivaram
a extinção do Programa do Leite e da Lei Sarney de incentivos à cultura. Nada
mais necessário, útil e grandioso do que quando o presidente Fernando Henrique,
em meio à crise social que abalava o país, restaurou os programas sociais,
principalmente o Programa do Leite e, em sua totalidade, os incentivos à
cultura.
José Sarney foi governador, deputado e senador pelo Maranhão, presidente da República, senador do Amapá, presidente do Senado Federal. Tudo isso, sempre eleito. São mais de 55 anos de vida pública. É também acadêmico da Academia Brasileira de Letras (desde 1981) e da Academia das Ciências de Lisboa.
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