sexta-feira, 26 de fevereiro de 2010

José Sarney

O drama de Brasília

Fui a Brasília pela primeira vez em 1958, há 52 anos, a convite de Israel Pinheiro, herdeiro de uma tradição que vinha de seu pai, o notável João Pinheiro. Israel, acima de qualquer suspeita, apoiado pela oposição, fora escolhido para presidente da Companhia Construtora da Nova Capital, a célebre Novacap. Era meu colega no Palácio Tiradentes, no Rio de Janeiro, comandando a temida Comissão de Finanças. Pessoalmente, mostrou-me as obras. Vi, fascinado, uma Babel: homens, caminhões e máquinas cruzando só estradas de poeira, um burburinho de máquinas, gentes, cimento, pedras em contraste com o silêncio das árvores sofridas e contorcidas de um cerrado ainda não derrubado. Evoquei a página de Afonso Arinos sobre o "buriti perdido, [...] testemunha sobrevivente do drama da conquista, [...] venerável epônimo dos campos". O pequi galhudo e verde, não desconfiando que em breve a motosserra cortar-lhe-ia o pescoço. Barracos, jardineiras nordestinas e no ar um cheiro de suor e poeira cobrindo a aventura da cidade que se levantava. Israel descrevia tudo com olhos de quem já estava vendo o que apenas nascia nas fundações. Os prédios cresciam nas superquadras. Eu lera a poética memória de Lúcio Costa que acompanhava o projeto. A descrição "das luzes baças" que iluminariam as áreas de residência, igualando os homens e humanizando o conviver. Três homens a sonhar. Juscelino, objetivo, olhando os dividendos políticos, Lúcio, o poeta-urbanista, imaginando que a cidade criaria um novo cidadão, e Oscar Niemeyer, o artista-escultor das linhas belas e curvas dos monumentos. Os construtores eram sempre os mesmos: a peãozada, mão de obra da miséria, vindos das áreas rurais pobres do Nordeste e de Minas. Não dava tempo para pensar na concepção institucional. Brasília, nesses 50 anos, viu as árvores e os homens chegarem de outras plagas. A espatódea africana de flores vermelhas e belas a expulsar a agaroba, e depois o exotismo dos canteiros de rosas, primaveras, gerânios a competir com as flores do cerrado. Brasília foi se formando com duas faces. Uma, burocrática, alienada da cidade, hóspede apenas. Outra crescendo no clima de aventura, a construir seus valores de fronteira, sem amarras nem limites, que seria a verdadeira, com suas qualidades e defeitos, cultura e modo de viver. Com os dramáticos e inacreditáveis acontecimentos de hoje, vive as contorções de suas fraturas. Não seria o momento de pensar em novos rumos para a cidade, grande metrópole, realidade dolorosa, longe do sonho e da utopia primeira?

José Sarney foi governador, deputado e senador pelo Maranhão, presidente da República, senador do Amapá por três mandatos consecutivos, presidente do Senado Federal por três vezes. Tudo isso, sempre eleito. São 55 anos de vida pública. É também acadêmico da Academia Brasileira de Letras (desde 1981) e da Academia das Ciências de Lisboa

jose-sarney@uol.com.br

Um comentário:

  1. Infelizmente Senador, para vergonha de nós brasileiros e brasileras, Brasília se transformmou nesse mar de lama que assitimos presentemente. Um esforço monumental de pessoas como o presidente Juscelino, do genial Oscar das sinuosas curvas e do povo, sendo malbaratado.

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