Um dos mais conceituados jornais europeus, o El
País, da Espanha, dedicou um de seus editoriais à decisão do senador José
Sarney de não disputar mais eleições. O texto, assinado pelo jornalista Juan
Arias, destaca a importância do político brasileiro no processo de redemocratização do país.
Segundo o jornalista, Sarney foi “a ponte entre a ditadura e a democracia” e
“ainda é visto como um elemento-chave na defesa das liberdades civis, da
democracia e das instituições republicanas”. Confiram:
A democracia
não murchou na minha mão
Juan
Arias/El País
José
Sarney decide não concorrer às eleições ao Senado, mas isso não significa que o
ex-presidente, romancista e poeta brasileiro deixará de ter influência nas
instituições do país.
A
história do Brasil não poderá ser contada sem o que representaram os 60 anos de
vida política do personagem José Sarney, ex-presidente da República,
membro da Academia Brasileira de Letras, romancista e poeta.
Sua
decisão de não concorrer, aos 84 anos, às eleições para o Senado, não significa
que Sarney deixará de ter influência nas instituições do país, já que é uma
daquelas pessoas que nasceram trazendo em seu sangue o doce veneno da política
e do gosto pelo poder. No entanto, sua ausência no Congresso em que militou por
mais de meio século não deixará de ser notada.
Talvez
por essa razão, não só o seu partido (PMDB), como também a presidenta Dilma e o
ex-presidente Lula tentaram, até o fim, convencê-lo a não entregar as armas.
Isso
significa que Sarney, que foi a ponte entre a ditadura e a democracia, ainda é
visto como um elemento-chave na defesa das liberdades civis, da democracia
e das instituições republicanas. “A democracia não murchou em minhas mãos” é
uma das frases cinzeladas pelo Sarney político e escritor. E é uma verdade que
nem seus críticos mais ferrenhos podem deixar de admitir.
Foi
dos lábios do ex-presidente e sociólogo Fernando Henrique Cardoso que ouvi,
durante um jantar no Rio com um grupo de políticos e empresários da América
Latina, os maiores elogios ao papel fundamental de Sarney em favor da
democracia neste país. Se é verdade que a política é a “arte do compromisso”,
já que os extremismos de qualquer matiz acabam ferindo a essência da
democracia, que representa consenso e diálogo entre diversos, Sarney foi um
mestre nessa arte. Não por acaso soube ser intérprete e ponto de referência
entre os vários governos pelos quais passou, dos conservadores aos
progressistas, algo que só costumam saber levar a cabo os verdadeiros
estadistas, que conseguem se colocar acima da política com letras minúsculas.
Já
ouvi de pessoas no mundo das letras que a primeira vocação de Sarney talvez
fosse a de escritor. De meu compatriota, Federico García Lorca, talvez o maior
poeta da língua espanhola, disseram que poderia ter sido melhor músico que
poeta. Na vida de uma pessoa muitas vezes cruzam-se vocações que podem até
parecer antagônicas. No entanto, a poesia que Sarney escreveu na obra Saudades Mortas (2002),
quase como um epitáfio, recebeu elogios de ilustres críticos brasileiros
como João Cabral de Melo Neto, Ferreira Gullar e Ivan Junqueira:
Passa
a borrasca,
a
torpe travessia,
esvai-se
na onda dissipada.
Renasce
a Luz
e de
novo espera viver.
Suas
memórias que tantos esperam com curiosidade já estão escritas. Elas poderão
revelar características inéditas do polêmico e robusto político. E será a
história que, com a distância das paixões do momento, acabará revelando o
político que não deixou a democracia murchar em suas mãos e ao qual nunca
faltou senso de humor, como quando afirmou que poderia conciliar a política com
a literatura porque hoje “a política tem muito de ficção”.
Sarney,
cuja personalidade forte e longa militância política desperta paixões e
críticas, às vezes impiedosas, contou-me que gosta de emoldurar as charges mais
ferozes contra ele e que sempre manteve relações cordiais com os humoristas,
que, diz ele, “sempre se inspiraram no meu bigode “.
Neste
particular, Sarney se vincula à tradição dos famosos estadistas italianos –
antes da chegada do pouco elegante Berlusconi –, que sabiam conviver
democraticamente, sem nunca abrir guerras contra a liberdade de expressão, por
mais duras que fossem as críticas políticas contra eles.
Leia
também:
Nenhum comentário:
Postar um comentário