sexta-feira, 6 de março de 2009

José Sarney

Política é conversa


Mais do que as casas, as ruas de Brasília dão problema. Teotônio Vilela, que era um grande "causeur", sempre me dizia que a cidade fora feita para ninguém receber citação judicial, com endereços que apenas referem números e pontos cardeais, como em Nova York, tentando evitar elitismos e criando o primeiro deles, que é de saber, num tempo em que a maioria da população era candanga, quase analfabeta, destas coisas que marcam a Terra. Daí esses enigmas das L2, W3, SQS, SMPW, blocos e quadras numeradas, mantendo uma lógica saudável, mas confusa, principalmente para os visitantes. O mais fácil em Brasília é encontrar gente perdida e atrás de endereço. Houve tempo em que a moda no Brasil, seguindo o mundo, era ter ruas com nomes de datas, e tivemos no Império muitas 7 de Setembro, para lembrar a Independência, e muitas 28 de Setembro, para lembrar a Lei do Ventre Livre. E depois também a Lei dos Sexagenários, ambas feitas no mesmo dia, uma em 1871 e outra em 1885. As 15 de Novembro proliferaram com a República. E houve até uma, em Pinheiro, só com um ano, batizada de rua 1789, para homenagear a Revolução Francesa, projeto de um rábula que tinha a mania de ser conhecedor profundo da vida de Robespierre. Não pegou e hoje se chama rua da Boiada. Depois veio a mania de homenagear pessoas, e então as cidades ficaram com uma confusão a mais. Os nomes em geral são de circunstância, na emoção do dia-a-dia. Na Revolução dos Tenentes, encheram-se as cidades de revolucionários nos becos e praças. São Luís exagerou: ruas Siqueira Campos, Mário Carpenter, Joaquim Távora e outros menos votados. Governador do Estado, fiz uma lei para voltarem os nomes antigos, portugueses: dos Afogados, da Mangueira, da Saudade, do Alecrim, do Veado, do Sol, das Hortas etc., nostalgia da metrópole e da Colônia. Numa das mais velhas ruas da cidade, fiz juntar a lembrança do casal que manteve, no Rio, o último dos salões literários: rua de Nazareth e coloquei Odylo a seu lado. Na Evocação do Recife, Manuel Bandeira, nostálgico, lembrava as ruas da cidade de sua infância: "Rua da União... / Como eram lindos os montes das ruas da minha infância / Rua do Sol / (Tenho medo que hoje se chame de dr. Fulano de Tal)". Mário de Andrade morava na rua Lopes Chaves e, na "Paulicéia Desvairada", diz "nem sei quem foi Lopes Chaves". Nessa história de confusão de nomes de ruas e orientação de cidades, comecei a pensar na política. E cheguei à conclusão de que ela não é como a confusão das ruas do Brasil, mas das de Tóquio, sem nome ou número, e o carteiro funciona de boca: onde mora fulano? É a lei de Otávio Mangabeira: "Política é conversa".


José Sarney é ex-presidente da República, senador do Amapá e acadêmico da Academia Brasileira de Letras e da Academia das Ciências de Lisboa
jose-sarney@uol.com.br

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