sábado, 24 de outubro de 2009

José Sarney

A panela dos poderes

Com o passar dos anos já é possível ver as conseqüências que vão surgindo e as tendências que se vão formando com a nova (?) Constituição de 1988. Acho que essa avaliação está passando ao largo dos estudiosos do direito e da sociologia política. A verdade incontestável é sua ambigüidade, sua dupla face: uma com normas próprias do regime parlamentarista e outra do presidencialismo predominante.
Vamos examinar especificamente a divisão clássica dos três Poderes: Executivo, Legislativo e Judiciário. Foi Montesquieu quem primeiro sistematizou essa divisão, embora ela já tivesse raízes inglesas (Locke). Foram estes certamente que, com a rule of Law, exerceram de maneira empírica esta separação, que veio a desaparecer depois que o parlamento absorveu o executivo e entregou ao Rei as funções honoríficas de Chefe de Estado.
Mas esse balanço de forças foi esquematizado pelos americanos na Constituição de Filadélfia de 1787. Era uma trindade lógica. O Judiciário como guarda da Constituição fiscalizava o Executivo e o Legislativo e este, particularmente, controlava aquele. Aqui a Constituição de 88 explicitou de tal maneira a independência que está desaparecendo a harmonia. Não no sentido de comportamento nem no conceito musical, mas na quebra do “acordo entre elementos diversos que resulta em algo agradável de ver ou ouvir”. O campo da harmonia e da independência passou a ter linhas divisórias difíceis de detectar.
A Constituição de 88 criou outros poderes também independentes, como o Ministério Público, a Polícia Federal, o Tribunal de Contas, enquanto a sociedade transformou a mídia, antes chamada quarto poder, em super-poder. Esses se tornaram tão fortes que surgiu a necessidade de controles externos.
Mas o que eu desejava mesmo é constatar que esse modelo de privilegiar a independência sem harmonia está criando um arquipélago em que cada um busca ampliar seu campo de mando, em prejuízo de uma coisa mais alta que é o próprio funcionamento da democracia.
A falta de harmonia está, como no universo em expansão onde se afastam as estrelas, afastando os poderes um dos outros, e o regime passa a funcionar em situações de atrito permanente, resultando na ineficiência do estado e em detrimento dos serviços que ele deve dar à sociedade. Os direitos individuais e políticos sofrem ataques restritivos. Vejam-se o número de obras paradas no País inteiro, o poder pessoal apropriado por alguns agentes dos poderes que determinam o que se deve fazer e não se deve.

José Sarney foi governador, deputado e senador pelo Maranhão, presidente da República, senador do Amapá por três mandatos consecutivos, presidente do Senado Federal por três vezes. Tudo isso, sempre eleito. São 55 anos de vida pública. É também acadêmico da Academia Brasileira de Letras (desde 1981) e da Academia das Ciências de Lisboa

jose-sarney@uol.com.br

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