sexta-feira, 16 de outubro de 2009

José Sarney

Mestiços, graças a Deus

    Em 1985, quando falei como presidente nas Nações Unidas, tive uma pequena divergência com o Itamaraty. Eu mesmo trabalhara o meu discurso e tinha escrito: "Malsinado o homem que tiver vergonha de pensar na terra sem a companhia de Deus" e "o Brasil é um grande país mestiço que se orgulha de sua identidade". Eles me advertiram que a referência a Deus não era diplomática, uma vez que a ONU era uma instituição laica e tinha países de vários credos ou mesmo ateus ou agnósticos. A outra observação era que eu não podia falar em país mestiço. Não era de bom tom. Recusei as duas observações e mantive meu texto. Sobre ser mestiço, ressaltei que várias das mais altas expressões criadoras da nossa cultura provieram da mescla racial, da mútua fertilização das etnias.
    Citei Machado, o Aleijadinho, gênio do barroco, e Villa-Lobos, incorporado à música universal. E quanto o Brasil deve, na sua cultura popular, ao gênio negro e ao espírito ameríndio.
    Agora, lendo os novos dados do IBGE, vejo que o número de pardos, negros e índios passou o de brancos. O sonho racista do século 19 do branqueamento da população cede ao forte sangue da miscigenação, cada vez mais presente no brasileiro. Isso faz com que a discriminação racial, que aqui é crime, e não só ilegítima, não tenha campo para expansão em nosso país. Relembro Gilberto Amado, que, como argumento de que no Brasil não havia discriminação, invocava um motivo semântico: aqui o mais carinhoso tratamento que se podia fazer a uma mulher era chamá-la de minha neguinha. O IBGE diz que a população brasileira hoje possui 48,4% (menos de metade) de brancos, 43,8% de pardos, 6,8% de negros e 0,9% de índios. Estes números revelam que cada vez mais construímos uma identidade própria e ultrapassamos a polêmica do passado entre os sociólogos, principalmente aqueles que nos julgavam vítimas de aspectos negativos das "raças inferiores".
    É bom lembrar que Darwin, em "A Descendência do Homem", após analisar a grande quantidade de classificação de raças, dizia que estas não eram um conceito biológico, e sim sociológico. O IBGE traz mais notícias boas, como a diminuição da pobreza, onde milhões de brasileiros deixaram a faixa da miséria.
    E já entramos na modernidade em nossas casas, com 1/4 delas conectadas à internet e 18 milhões já possuindo computador. O Brasil alcançou um novo patamar internacional, e no mundo já foi o tempo de sermos chamados de cucarachos. Foi assim que li em Juan Arias que o brasileiro se distingue de todos pela sua "vocação inata à felicidade". É a nossa alegria. E veio da África. Vamos esquecer o empate com a Venezuela.

    José Sarney foi governador, deputado e senador pelo Maranhão, presidente da República, senador do Amapá por três mandatos consecutivos, presidente do Senado Federal por três vezes. Tudo isso, sempre eleito. São 55 anos de vida pública. É também acadêmico da Academia Brasileira de Letras (desde 1981) e da Academia das Ciências de Lisboa
    jose-sarney@uol.com.br

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