sexta-feira, 8 de abril de 2011

José Sarney


O sangue das meninas

O Brasil inteiro está tomado de grande comoção e também de grande revolta. Não fomos feitos para viver tragédias desse tipo. Em Realengo, no Rio de Janeiro um fronteiriço, possesso entre a loucura e a maldade — esta é a palavra — invade uma escola e atira nos alunos que estavam em classe, faz tombar mortos dez meninas e dois meninos, além de ferir mais de 15 estudantes, alguns gravemente. A presidente convidou-me para uma solenidade no Palácio do Planalto, às 11 horas de ontem, para comemorar o milionésimo empreendedor individual. Nunca a vi tão triste e tomada de um sentimento de compaixão: tinha lágrimas em seus olhos. Cancelou a solenidade e transformou-a num minuto de silêncio. Em todos, um sentimento de solidariedade na dor das famílias dos mortos que tiveram, de súbito, seus filhos sem direito à esperança e ao futuro. Merece uma reflexão profunda essa ininterrupta onda de matadores em escolas. A cultura anglo-saxônica é vulnerável a surtos de violência fanática que levam a tragédias desse tipo. Disseminou-se no mundo esse mau e trágico exemplo. Nunca podemos esquecer o que aconteceu no colégio Columbine, em Littleton, Colorado, USA e na Virginia Tech University. Numa 12 alunos e uma professora mortos, noutra 32 pessoas mortas e 15 feridas. O primeiro foi até mesmo motivo a um filme comovente, Tiros em Columbine, de Michael Moore, um libelo contra a venda de armas. As motivações que levam a esses fanáticos são de várias origens. Uns de doença mental, outros por motivos religiosos, outros por ressentimentos e ódio contra o mundo, e mais outros por esse fenômeno inconcebível do bullying. Com ele a escola — tempo da infância, lugar onde aprendemos a conviver, marcando nossas vidas para sempre, no afeto entre colegas — transforma-se numa câmara de tortura donde se foge e que se tenta esquecer. Quando soube da notícia, veio-me na cabeça, não sei porque, o poema de Lorca sobre o toureiro Inácio: “Dile a la luna que venga, / que no quiero ver la sangre / de Ignacio sobre la arena” e a Igreja do “Sangue derramado”, de São Petersburgo. Essas meninas perdem o direito de viver e nos dão um sentimento de culpa pelo homem, a espécie capaz de gerar monstros. Nunca conseguimos dar adeus às armas e substituir o ódio pelo amor de uns aos outros. Que o sangue inocente de meninas e meninos sirva para, com revolta, chorar por esse mundo cão. Não temos palavras para falar dessas flores que murcharam. E lembremos que o Brasil aprovou em plebiscito a continuidade da venda de armas. Que esse exemplo nos leve a rever o erro.

José Sarney foi governador, deputado e senador pelo Maranhão, presidente da República, senador do Amapá por três mandatos consecutivos, presidente do Senado Federal por três vezes. Tudo isso, sempre eleito. São 55 anos de vida pública. É também acadêmico da Academia Brasileira de Letras (desde 1981) e da Academia das Ciências de Lisboa.

jose-sarney@uol.com.br

Nenhum comentário:

Postar um comentário

Acompanhe

Clique para ampliar