segunda-feira, 15 de março de 2010

Redemocratização do Brasil completa hoje 25 anos

Principal responsável pela transição que reconduziu o Brasil ao Estado Democrático de Direito, desde cedo o presidente do Senado, José Sarney, vem recebendo telefonemas de pessoas recordando aquele momento crucial para a história do país. É que completa 25 anos nesta segunda-feira (15) o segundo período de redemocratização vivido pelo Brasil, quando Sarney assumiu o poder e encerrou-se o ciclo de 21 anos do regime militar vigente desde 1964.

Na história do país, o primeiro processo de redemocratização foi muito curto. Ocorreu em 1945, com a deposição de Getúlio Vargas e o fim do chamado Estado Novo. E acabou no golpe de março de 1964. O período hoje vivido pelo país é, portanto, a mais longa seqüência de governantes democraticamente eleitos e cujas eleições transcorreram normalmente. Desde Sarney, chegaram pelo voto - e na mais plena liberdade - ao Palácio do Planalto os presidentes Fernando Collor de Mello e seu vice Itamar Franco, além de Fernando Henrique Cardoso e Luiz Inácio Lula da Silva.

A eleição da chapa composta por Tancredo Neves e José Sarney pelo Colégio Eleitoral, para presidente e vice-presidente, denominada Aliança Democrática, no dia 15 de janeiro de 1985, deu início ao segundo processo de redemocratização na história brasileira.

Na véspera de tomar posse, em 14 de março daquele ano, Tancredo foi internado em estado grave no hospital e o vice-presidente José Sarney assumiu o cargo, exatamente no dia 15 de março de 1985. Depois de ser submetido a sete cirurgias - duas realizadas em Brasília e outras cinco em São Paulo -, Tancredo morreu no dia 21 de abril de 1985, na capital paulista.

A chapa de Tancredo e Sarney foi formada após a derrota da emenda Dante de Oliveira no Congresso, em abril de 1984, que previa eleições diretas para presidente da República. A Aliança Democrática derrotou o candidato da situação Paulo Maluf, com um placar de 480 a 180 votos e 26 abstenções no Colégio Eleitoral.

Sarney e a transição democrática

"O importante não é o que fazem do homem,
mas o que ele faz com que fizeram dele”.

Jean-Paul Sartre

Por Said Dib, historiador e analista político em Brasília

Não se sabe se Sartre, filósofo, escritor, ateu, conheceu o também intelectual e político maranhense, José Sarney, católico fervoroso, místico assumido, mas bem poderia ter se inspirado no autor de “Marimbondos de Fogo” para criar o que definia em sua filosofia existencialista como os “homens autênticos”, aqueles que sabem assumir posições, que conseguem dar sentido às suas ações, à suas existências, principalmente quando as adversidades da vida (“o que fazem dele”) assim o exigem. Sartre diferenciava esta espécie de homens daqueles que não tomam posição, não assumem responsabilidades, os inautênticos. Estes, segundo o pensador francês, diante dos vários caminhos que a vida proporciona, ao terem que enfrentar a “angústia inexorável da escolha”, experimentam “o peso da liberdade”, se sentem no vazio e encolhem, aninhando-se no que chamava de “má fé”. Sarney se mostrou um paradigma do primeiro tipo, os homens de “boa fé”, quando, diante da trágica morte de Tancredo, foi alçado à Presidência num contexto extremamente adverso e delicado de transição política e profunda crise econômica. Mas, não se encolheu. Tornou posição, assumiu responsabilidades, cumprindo todos os compromissos da Aliança Democrática. A verdade é que a missão de Sarney não foi nada fácil. Longe disso, pois, além dos profundos problemas políticos e econômicos que herdara, a imprensa, amordaçada por anos e aproveitando-se da natural frustração das massas em decorrência da morte do Presidente eleito, durante toda a “Nova República” não deu tréguas. Constantemente se tentou abstrair o papel de Sarney - junto com Tancredo, Marco Maciel, Aureliano, Montoro e outros - da complexa e delicada negociação com vistas à eleição do governador mineiro. Na verdade, a imagem que tentaram fazer dele não foi nada honesta. Não havia qualquer clima favorável ou mesmo compreensão, por parte da mídia, para a necessidade, pelo menos, de se dar um tempo para se construir a governabilidade. Lastreado pela sua história de vida, o Presidente Sarney teve que conquistar esta condição, a despeito da mídia e dos que se diziam aliados, ou seja, só pôde contar consigo mesmo, com boa-fé e sua extraordinária vontade política. E é a longa e vitoriosa vida deste homem que vamos relembrar agora.




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    A origem
    21 de abril de 1930. Nasce José Sarney em Pinheiro, no Maranhão. Filho de Sarney de Araújo Costa e de dona Kiola Ferreiro de Araújo Costa, fez os estudos secundários no Colégio Marista e no Liceu Maranhense, cursando em seguida a Faculdade de Direito do Maranhão, pela qual se bacharelou em 1953. Já por essa época ingressou na Academia Maranhense de Letras. Ao lado dele, Bandeira Tribuzi, Luci Teixeira, Lago Burnet, José Bento, Ferreira Gullar e outros escritores, que fizeram parte do movimento literário difundido através da revista que lançou o pós-modernismo no Maranhão, “A Ilha”, que Sarney ajudou a fundar. Experiência literária que traria por toda a vida.

    A “Bossa Nova da UDN”

    Ingressou na vida política ao eleger-se, em outubro de 1954, “quarto suplente” de deputado federal na legenda do Partido Social Democrático (PSD), com 3.271 votos. No início da década de 1960, participou ativamente das primeiras articulações do auto-intitulado “movimento renovador da UDN”, identificado pela estreita vinculação com a candidatura, afinal vitoriosa, de Jânio Quadros às eleições presidenciais de outubro de 1960. Empossado Jânio em janeiro de 1961, três meses depois, numa convenção em Recife, o grupo apareceu ostensivamente, já com a denominação “Bossa Nova”, pregando uma linha de centro-esquerda, inspirada no programa de desenvolvimento com justiça social da doutrina da Igreja Católica. Politicamente, o grupo apoiava as propostas reformistas que eram consideradas nacionalistas e de interesse popular, tais como as leis antitruste e de remessa de lucros, a defesa das riquezas minerais, o combate à inflação, a reforma da lei de imposto de renda e a extinção das ações ao portador, entre outras.

    Em outubro de 1962, na legenda “Oposições Coligadas”, à qual se unira o Partido Trabalhista Nacional (PTN), foi reeleito com a maior votação obtida no Maranhão por um candidato da oposição: 21.294 votos. Em abril do ano seguinte tornou-se um dos signatários mais ativos do manifesto da “Bossa Nova”, apresentado em Curitiba, na convenção nacional da UDN, pelo deputado José Aparecido de Oliveira (MG). O documento representou a ruptura decisiva da ala dissidente com relação aos udenistas tradicionais ao defender as reformas agrária, bancária, tributária e urbana, a política externa independente, o Plano Trienal do governo, a consolidação de Brasília, a democratização do ensino, o monopólio estatal do petróleo e a Eletrobrás. A “Bossa Nova” defendeu ainda a reforma agrária com emenda à Constituição, aceitando até a tese do Partido Trabalhista Brasileiro (PTB) a favor do “arrendamento compulsório”.
    Segundo Maria Vitória Benevides, poucos dias antes do movimento político-militar que depôs João Goulart, Sarney foi um dos primeiros a protestar contra, discursando na Câmara advertindo para o perigo das soluções fáceis para as crises: “O regime de opressão e de opróbrio jamais satisfaz o povo. Foi através da democracia, da manifestação do pensamento em praça pública e do voto que os trabalhadores conseguiram conquistar a situação de que hoje desfrutam. Por isso mesmo, recuso-me a acreditar que uma política popular possa, em algum momento, conjugar-se com a supressão das liberdades políticas”.

    O Governo do Maranhão

    Candidato da coligação da UDN com o Partido Social Progressista (PSP) – e apoiado pelos setores mais progressistas de então -, Sarney conquistou o governo do Maranhão em outubro de 1965, recebendo uma votação inédita na história do estado: 121.062 votos, o dobro do segundo colocado, Antônio Eusébio da Costa Rodrigues, do PDC, apoiado pelo governador pessedista, Newton Belo. Em várias regiões, a frente oposicionista, liderada por Sarney, procurou organizar os adversários do “vitorinismo” e, em particular, os remanescentes das associações de lavradores e trabalhadores agrícolas - e dos sindicatos de produtores autônomos (entidades que haviam sido fechadas e seus principais líderes presos em virtude do movimento militar de março de 1964) - e com eles desmontar, em nível local, os esquemas de controle do voto dos pessedistas. Percorrendo inúmeros povoados, fazendo contatos e estimulando debates, os trabalhadores rurais apoiaram integralmente a candidatura Sarney. Nesta campanha, Sarney recebeu o apoio de importantes personalidades dos setores mais progressistas do Brasil, como o cineasta Glauber Rocha, que fez questão, inclusive, de fazer um filme promocional para o candidato Sarney.

    Visando acabar com o poder das oligarquias tradicionais, o governo Castelo Branco promoveu no Maranhão a revisão dos títulos eleitorais para extinguir a corrupção, que sempre dava a vitória ao PSD de Vitorino Freire. Assim, antes das eleições, descobriu-se a existência de 206.206 eleitores “fantasmas” (dos 497.436 eleitores inscritos em 1962, após a revisão, em 1965, o número de eleitores passou para 291.230). Por esta razão e pela força política pessoal de Sarney, este pode conseguir uma ruptura com o estado de coisas que vigorava em seu estado durante longos anos.



    Desenvolvendo um estilo próprio de governo - popular dinâmico e modernizador -, Sarney recebia em audiências diariamente dezenas de pessoas dos mais variados setores da população e provocou, segundo Veja (11/3/70), uma revolução na administração, chamada de “milagre maranhense”. Os investimentos decuplicaram, aumentando em 2.000% o orçamento do estado. O novo governador sabia que era necessário compensar anos de atraso. Por isso, foi constituída a usina hidrelétrica de Boa Esperança, na fronteira sul do Maranhão com o Piauí, pela Companhia Hidrelétrica de Boa Esperança (Cohebe), que passou a fornecer energia a cerca de 40 cidades do interior dos dois estados e parte do Ceará.

    Ainda segundo Veja (4/2/1976), nos quatro anos da administração Sarney o Maranhão deu um salto: o estado pulou de zero para quinhentos quilômetros de estradas asfaltadas - e mais dois mil quilômetros de estradas de terra -. Criou-se, além disso, uma rede de telecomunicações cobrindo 85 municípios; elevou-se de um para 54 o número de ginásios estaduais e ampliaram-se de cem mil para 450 mil as matrículas escolares. No início de 1970, Sarney inaugurou, com uma assistência de cem mil pessoas, a ponte de São Francisco, sobre a foz do rio Anil, ligando a ilha de São Luís — onde fica a capital - ao continente. A construção da ponte já havia passado ao domínio da lenda, pois se estendera por vários governos. A construção do porto de Itaqui, a barragem do rio Bacanga e o planejamento da cidade industrial foram outras iniciativas. Ainda em meados de 1970, antes do fim do mandato, deixou o palácio dos Leões para candidatar-se ao Senado, sendo substituído pele vice, Antônio Dino. Ao deixar o governo, recebeu uma das maiores consagrações populares nas ruas de São Luís. Quarenta e oito horas depois de ter recebido o cargo, Dino rompeu com o antecessor. Iniciaram-se então, segundo José Ribamar Caldeira, os sinais de oposição entre o sarneismo e o novo governo do estado.

    A Primeira Senatoria

    Sarney foi eleito senador pela primeira vez com 236.618 votos. Em fevereiro de 1971, assumiu o mandato no Senado e ainda nesse ano ocupou a presidência do Instituto de Pesquisas e Assessoria do Congresso (IPEAC). Nessa condição, foi um dos promotores do debate sobre a necessidade de modernização do Parlamento, tendo integrado, com Ney Braga (PR) e Franco Montoro (SP), uma comissão constituída para esse fim, presidida por Carvalho Pinto (SP). A comissão iniciou os estudos para a informatização da Casa e a criação do Prodasen, durante a gestão de Petrônio Portela na presidência do Senado (1977-1979). Esta experiência seria extremamente importante para o que faria, mais tarde, quando, na sua primeira Presidência no Senado, promoveu uma verdadeira revolução nos sistemas de informação e de comunicação do Senado Federal, criando a TV e a Rádio Senado e melhorando o sistema de informática da Casa.


    A Presidência do PDS

    Em 28 de fevereiro de 1980, a comissão nacional provisória do PDS elegeu, para presidente e secretário-geral, José Sarney e Prisco Viana, deputado pela Bahia, designando ainda os integrantes das comissões regionais provisórias em 11 estados. No decorrer de 1980, o novo partido governista viria a enfrentar sérias dificuldades internas, que colocariam em xeque a liderança de Sarney. As propostas mais democráticas de Sarney não obtiveram do partido o retorno necessário. Eram consideradas avançadas demais. Setores da linha dura e velhos políticos mais conservadores acabaram por boicotar a presidência de Sarney. As lideranças estaduais pressionariam a direção do partido em virtude da marginalização que lhes era imposta pelo governo federal. E, finalmente, havia ainda o problema do restabelecimento das prerrogativas do Legislativo, tese defendida por Sarney e pela ala liberal do partido, o que reforçaria as dissensões.
    Do lado da oposição, a escalada de atentados terroristas de direita contra setores oposicionistas provocaria uma reação mais intensa ainda, que exigiriam a rápida apuração e punição dos culpados. Novamente a oposição ensaiaria a tese da convocação imediata de uma assembléia nacional constituinte. Sarney sentia que era necessária muita calma, o momento era extremamente delicado e o caminho do diálogo, o único viável.
    No início de junho foi firmado um acordo entre as lideranças do governo e da oposição no Congresso no sentido de se conceder prioridade à tramitação da emenda denominada Flávio Marcílio que restabelecia as prerrogativas do Legislativo, suprimidas pela junta militar, através da Emenda Constitucional n° 1 de 1969, sem, no entanto, antecipar a apreciação do projeto do governo, de realização de eleições diretas para governadores e a totalidade do Senado. No fim de julho, Sarney manifestou-se a favor da total inviolabilidade parlamentar, concordando com a posição assumida pelo deputado Flávio Marcílio (PDS-CE), presidente da Câmara. Devido à pressão governamental, a emenda Flávio Marcího seria, entretanto, arquivada nesse ano.
    No fim de agosto, Sarney anunciou que procuraria Ulisses e o senador Tancredo Neves, presidente do PP, para estabelecer o que chamou de “mecanismos de consulta”, através dos quais os partidos teriam respeitadas as suas posições, mas buscariam encontrar “um terreno comum de interesse público”. Começava assim um relacionamento que seria extremamente importante para a futura Aliança Democrática. Na ocasião, sucediam-se mais atentados terroristas de direita que, segundo o senador pedessista, Luís Viana Filho, partiam “de elementos que querem perturbar a marcha do país para a democracia”. No mais grave desses atentados, explodira uma bomba na sede da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), no Rio de Janeiro, causando uma morte: Lida Monteiro da Silva, diretora da Secretaria.
    O deputado pernambucano Tales Ramalho, secretário-geral do PMDB, o terceiro representante da oposição a ser procurado, definiu esse trabalho de Sarney como uma “quebra do radicalismo político”. No encontro, foi feita uma análise dos atentados terroristas e debatido o documento do PP apoiando o governo para a adoção das medidas necessárias ao combate ao terror. Sarney reiterou sua intenção de não excluir qualquer partido desse entendimento político, anunciando que deveria encontrar-se ainda com os presidentes do PDT, Leonel Brizola, e do PT, Luís Inácio da Silva, o Lula. Seriam também procurados os líderes dos partidos na Câmara.

    No fim de novembro, entretanto, Sarney justificou sua iniciativa de procurar os líderes oposicionistas afirmando que “tínhamos realmente uma fase difícil, em que alguns setores dentro do Congresso davam a impressão de cobrar da área militar sua participação na Revolução de 1964”. Em sua opinião, seria impossível o processo de abertura política “se as forças armadas não estivessem conscientizadas e garantindo essa mesma abertura”.

    O ano de 1981 seria particularmente difícil para o governo Figueiredo, que teria várias vezes ameaçada sua política de abertura. O principal obstáculo foi a intensificação das atividades terroristas. Reforçava-se, assim, a compreensão de Sarney de que seria necessário fazer se fazer uma transição para a democracia não contra os militares, mas com eles, profissionalizando as Forças Armadas e levando-as de volta aos quartéis.

    A aproximação com Tancredo

    No PMDB, a despeito de seu programa contrário à participação no processo indireto, um grupo, percebendo as dificuldades de todo o processo de abertura, começava a sustentar que Tancredo Neves, governador de Minas e político dotado de perfil moderado e conciliador, reunia condições para aglutinar a maioria dos oposicionistas, obter a vitória no Colégio Eleitoral e comandar a última fase da transição política em curso. Simultaneamente, crescia a campanha pelas eleições diretas. Depois de um comício em Curitiba, que teve a presença de cerca de 40 mil pessoas, mais de cem mil manifestantes reuniram-se em São Paulo, em 25 de janeiro de 1984, para exigir a aprovação da “emenda Dante de Oliveira”.

    A campanha popular pelas diretas ainda marcava o clima político quando, em 11 de junho de 1984, a Executiva Nacional do PDS, cuja maioria simpatizava com a candidatura de Maluf, que fazia intensa campanha de aliciamento dos delegados, vetou proposta de realização de uma consulta prévia às bases sobre os candidatos à eleição presidencial, apresentada por Sarney e pelo grupo anti-Maluf. Sarney renunciou imediatamente à presidência do PDS. Alguns dias depois, seu sucessor, senador Jorge Bornhausen (SC), também renunciou, sendo substituído pelo senador Ernâni Amaral Peixoto (RJ).

    O fortalecimento da posição de Maluf levou seus adversários a unirem-se numa frente contra ele. Em 3 de julho, Maciel anunciou que, com Aureliano, se retirava da disputa. Dois dias depois, em reunião de que os dois se ausentaram, o senador Augusto Franco (SE) foi escolhido para presidir o PDS. Em 13 de julho, Aureliano se pronunciou publicamente em apoio à candidatura de Tancredo. Em seguida, os dissidentes pedessistas se organizaram na Frente Liberal, que, em 18 daquele mês, indicou Sarney para vice de Tancredo. Cinco dias depois, Sarney desligou-se do Diretório Nacional do PDS. Nesse mesmo dia, o PMDB e a Frente Liberal fecharam um acordo para a candidatura de Tancredo.

    Ratificada a candidatura de Sarney pela Frente Liberal em 1” de agosto, data em que deixaram o PDS os governadores Conzaga Mota (CE) e Roberto Magalhães (PE), seis dias depois se formalizou em Brasília a Aliança Democrática com o PMDB. Na ocasião, foi firmado um documento intitulado “Compromisso com a Nação”, em que se propunha uma reforma institucional como meio para alcançar a democracia plena, profundas modificações na economia, uma reprogramação global da administração da dívida externa, a reformulação da política salarial e o estabelecimento de um novo pacto social, no bojo do debate sobre uma nova Constituição.

    Realizada a eleição em 13 de janeiro de 1985, a chapa da Aliança recebeu 480 votos, contra 180 dados a Maluf e ao seu companheiro de chapa, Flávio Marcílio, 17 abstenções e nove ausências. Entre os partidos de oposição, apenas o PT não a apoiou, por considerar ilegítima a eleição indireta. Tancredo, que vinha adiando uma cirurgia para depois da posse, marcada para 15 de março, internou-se na véspera, às pressas, para operar o intestino. O fato provocou grande comoção popular, que, explorada intensivamente pelos meios de comunicação, atingiria dimensões inéditas na história do país.

    A solução para o problema criado pelo impedimento de Tancredo foi objeto também de considerações jurídico-políticas. Na véspera da posse, contudo, uma reunião de Leitão e lideres políticos teria deliberado que Sarney assumiria interinamente a presidência da República.

    A Presidência da República inesperada


    Sarney, como na atual situação de Lula, recebeu uma herança pesada: 100 bilhões de dólares de dívida externa e 230% de inflação, justamente num ambiente político ansioso por reformas, com a opinião pública e a mídia iludidos de que apenas um governo poderia resolver, como por encanto, mazelas que obviamente demandariam décadas, num esforço de toda a Nação. Quase vinte anos de regime de força e violência não valeram nem mesmo para mitigar a situação das camadas populares; e os resultados econômicos deixados geraram contradições tão gritantes que a crise tornou-se aguda. Diferente de Lula, que, se contados todos que votaram nele e os votos anti-Serra, assumiu com aproximadamente 80% de apoio popular, Sarney teve que enfrentar, eleito vice-Presidente de uma eleição indireta, uma grave crise política e problemas econômicos estruturais graves, sem qualquer respaldo popular ou por parte de partidos políticos.

    Por outro lado, de 1964 a 1984, o Brasil não deixou de ser uma economia dependente do mercado mundial e de investimentos estrangeiros. A produção nacional continuou voltada para o mercado externo em detrimento do interno; os latifúndios continuaram a se estender pelo território nacional e a renda concentrou-se ainda mais. Além disso, permaneceram elevados os níveis de analfabetismo, evasão escolar, subnutrição e mortalidade infantil. A favelização das grandes cidades se intensificou, trazendo todos os seus resultados naturais: violência, drogas, banditismo, etc... Nos últimos anos desse período, acentuou-se a proletarização das camadas médias e o empobrecimento das camadas populares, geradas principalmente pela crescente inflação e pelo achatamento salarial.

    A tomada de decisões

    Mas, Sarney não se acomodou. Tomou as decisões corretas que eram factíveis naquele momento, excluindo sempre o caminho econômico ortodoxo que sacrificaria, mais uma vez, os setores mais humildes e carentes de proteção social. Por outro lado, quebrando o obscurantismo do regime anterior, buscou na transparência a principal característica administrativa de seu governo. Assim, quanto às finanças, por exemplo, a “Nova República” surpreendeu. Elaborou programa de redução das despesas e revisão dos gastos públicos, deu sistematização e transparência ao processo orçamentário (unificando o Orçamento e criando o SIAF), saneou o Banco do Brasil e o Banco Central, mas sem se submeter aos ditames do FMI e sempre valorizando os funcionários públicos, algo que os tecnocratas de hoje parecem pouco propensos a fazer.

    Neste cenário, atento ao que viria, tempos depois, a ser o verdadeiro paradigma de transparência, representado pela “Lei de responsabilidade fiscal”, Sarney iniciou, já em 1986, quando criou a “Secretaria do Tesouro”, o fim da “Conta Movimento do Banco do Brasil”. Quem se lembra, hoje, do que era a conta movimento do Banco do Brasil? Era o instrumento mais importante e mais desagregador da política brasileira. O Banco do Brasil tinha uma carteira que administrava recursos resultantes de emissões de papel-moeda e que se destinavam a socorrer empresas de amigos do governo. Era a “maquininha ‘mágica` de fazer dinheiro”, um dos fatores mais importantes que pesava sobre a inflação e que tornavam privados os recursos que deveriam ser públicos. Pois foi Sarney o primeiro presidente que teve coragem de tomar a decisão de acabar com esta aberração de fazer dinheiro e inflação, criando a Secretaria do Tesouro. Não existe, na História da República, gesto maior de moralização e transparência de recursos públicos do que este, uma verdadeira revolução no trato com o dinheiro público, pois todo mundo que chegava à Presidência deixava essa monstruosidade orçamentária continuar porque era altamente útil ao aliciamento político. E isso nunca deu manchete de jornal. Mas, como era de se esperar, o ato do Presidente Sarney provocou a ira de importantes políticos e o surgimento e inimigos poderosos nas elites e nos jornais.


    Preocupado com o Brasil, Sarney foi obrigado, também, a negociar a “moratória” em termos sempre soberanos, diante de uma herança explosiva gerada pelas estripulias financeiras que vinham desde JK e que foram maximizadas pelo regime militar. Fato que, estranhamente, não obteve apoio das esquerdas de então, nem muito menos, como se sabe, da mídia. Mas, mesmo tendo que administrar a questão da crise dívida externa - que não era um fenômeno brasileiro, pois afetava vários países e tinha origens nos juros aumentados aleatória e unilateralmente pelos EUA desde 1971 - o que também ninguém fala é que, de 1985 até 1990, o Brasil não tinha déficit no balanço de pagamentos. Nessa época tínhamos importante indústria naval, exportávamos navios, praticamente não pagávamos fretes; o controle cambial, mecanismo que nenhum país desenvolvido abre mão, era um importante elemento de contensão das perdas de divisas; e não havia, também, nenhuma subserviência do Governo Federal para com entidades multilaterais, como o FMI, que nos impusesse absurdos, como a exigência de superávit fiscal e o envio automático dos nossos tributos e contribuições para se pagar dívidas fictícias. Por tudo isso, as dívidas interna e externa, no governo Sarney, não aumentaram.

    A despeito dos devaneios ideológicos da mídia e dos pressões internacionais, por outro lado, as principais empresas estatais, durante a “Nova República”, não estavam deficitárias e nem proibidas de investir em nossa infra-estrutura; e Sarney, até o último momento, mesmo pressionado pelas conjunturas desfavoráveis, tentou evitar o processo de rapina que se constituiria, mais tarde, nas privatizações/doações do patrimônio nacional. Com estas, depois do Collor, mas principalmente com FHC, pelo contrário, aumentaram barbaramente as remessas de juros, lucros, dividendos, pagamentos de royalties, etc. Nos cinco anos do governo Sarney não houve déficit no balanço de pagamentos. O governo brasileiro precisou nos seus cinco anos apenas de 12 bilhões de dólares. Quer dizer: Sarney em 5 anos quase não usou recursos externos, não aumentou a “dívida” ,como faria, mais tarde, FHC, com a política suicida de juros altos, o descontrole cambial, a capitalização irresponsável de recursos externos e as privatizações.

    Para que se tenha uma idéia, não existia no tempo de Sarney, mas apareceu um novo item destruidor, com o futuro governo tucano: a dívida interna. E que não era - e não é - tão interna assim, pois mais de 30% dessa “dívida” é reajustada em dólar. Por tudo isso, balança comercial, balanço de pagamentos, “dívida” interna reajustada em dólar, houve a necessidade de recursos externos, a juros de agiotagem, o que não ocorreu na Nova República.

    Por outro lado, quanto aos investimentos, se compararmos os dias de hoje com o que foi feito durante a “Nova República”, verificaremos que, também neste aspecto, o período do governo Sarney, mesmo com as imensas dificuldades políticas, foi bastante bem. Por exemplo, os números levados pelo Tesouro Nacional ao recente debate no Senado sobre as Parcerias Público-Privadas, mostra a série sobre investimentos do Tesouro e atualiza os gastos do governo federal desde 1980. Não são considerados os gastos das estatais. O Tesouro atualiza os valores pelo IGP-DI (índice de inflação que capta com mais rapidez variação de preços atrelados ao dólar). O resultado do levantamento mostra, no ano passado, o menor gasto com investimentos públicos desde 1984. Foram R$ 6,9 bilhões no primeiro ano de Lula, contra R$ 6,1 bilhões no último ano completo de mandato do general João Figueiredo. A série mostra que o melhor ano em investimentos públicos foi 1987, em pleno governo Sarney - R$ 21,7 bilhões em valores já atualizados.


    Por isso, o último grande investimento na recuperação das rodovias, por exemplo, foi feito no governo Sarney, com a restauração de mais de 5 mil km, enquanto os governos seguintes deram prioridade à construção de novos trechos sem injetar dinheiro na manutenção do patrimônio existente.

    Por tudo isso, diferente do que vem acontecendo, o PIB, na época de Sarney, cresceu em média 4,4% ao ano. Em termos absolutos, atingiu 5.3%. Pelos dados do Bacen e da FCV, per capta, ou seja, dividindo o PIB absoluto pela população, de 1985 a 1989, houve um crescimento de 81,41% reais, diferente do que ocorreria com os governos Collor/Itamar, com 22.06%; e principalmente com os seis primeiros anos de FHC, míseros 1,18%. Houve, ainda, crescimento e pleno emprego — o PIB per capita em dólares dobrou, chegando a US$ 2.923 (em 2004 estava em US$ 2.789), enquanto o desemprego era o menor de nossa História (2,36%). O país era a 7ª potência industrial do mundo. Tivemos 67 bilhões de dólares de saldo comercial (contra um déficit de 8 bilhões de dólares no período de 1995/2002) O PIB passou de 189 para 415 bilhões de dólares, e a dívida externa caiu de 54% para 28% do PIB. A produção de petróleo passou de 2,7 para 8 bilhões de barris. A safra agrícola passou de 50 para 60 milhões de toneladas de grãos. No setor elétrico, a produção aumentou em 24,1%, o número de consumidores em 22,3%, foram investidos 29 bilhões de dólares. O déficit primário de 2,58% do PIB foi transformado em superávit de 0,8%.

    Como não poderia deixar de ser, o desemprego médio do Período Sarney, de 1985 a 1989, foi de apenas 3,95%, tendo chegado a 3,5% em 1989. Hoje, atinge 20%. Nos governos Collor/Itamar (1990 a 1994) a média foi de 5,05%; no de Fernando Henrique, somente até o ano 2000, atingiu a média de 5,59%. Depois disso, o índice ficou descontrolado, atingindo, desde 2001, a casa dos dois dígitos.

    O “Tudo pelo Social”


    No plano específico das políticas sociais, no governo Sarney o povo, mesmo tendo o poder efetivo de compra preservado e ainda convivendo com índices pequenos de desemprego, não podia esperar. Como era de se imaginar, amordaçado desde 64, queria mais. A “panela de pressão” política estourou nas mãos de Sarney. Os trabalhadores incluídos nas políticas sociais desde Vargas, ou seja, os sindicalizados, exigiam, naturalmente, benefícios e ganhos imediatos. Logo nos primeiros dias de governo, diante das liberdades sindicais e dos direitos de manifestação e reivindicações garantidos justamente pelo governo Sarney, os trabalhadores foram à luta, não perderam tempo. Mais uma vez, Sarney, dialeticamente, gerava as condições democráticas que, ironicamente, se voltariam contra ele. Era o preço pago por ser um democrata convicto.

    Ao garantir a liberdade sindical e não aceitar repressão aos trabalhadores foi bombardeado justamente por eles. E a imprensa, lógico, não perdoou. Em análises sempre simplistas e descontextualizadas, passava a imagem de que a explosão reivindicativa dos trabalhadores era coisa do Sarney, o cordeiro que necessariamente tinha que ser imolado, sempre. Fenômeno típico do sistema presidencialista. Depois de anos de repressão violenta contra os trabalhadores e os sindicatos, o País foi sacudido por uma ampla onda de greves, capitaneadas pela CUT e pelos petistas nada moderados de então, mal começava o novo governo, o primeiro civil em muitos anos. As diversas negociações entre grevistas, patrões e governo deixaram claro que a realização de um “pacto social”, defendido pelo Presidente, seria bastante delicado e difícil de acontecer, mas, em momento algum o governo deixou de negociar e mediar os conflitos através das juntas de conciliação promovidas pelo ministro do Trabalho, Almir Pazzianoto. Criou-se, naquele período turbulento, por determinação do Presidente Sarney, a cultura da negociação entre patrões e empregados e instituiu-se, definitivamente, a Justiça Trabalhista, com enorme eficiência devido à criação de centenas de Juntas de Conciliação e Julgamento. Foi uma área em que o governo atuou com grande e sensível competência, tanto política quanto jurídica. Mas, na mídia, nada foi mostrado como deveria. Ou seja, mostrava-se o problema, mas não as soluções e os esforços assumidos.

    A todos os movimentos grevistas, incluídas duas tentativas fracassadas de greves nacionais, o presidente Sarney reagiu com paciência, estimulando patrões, empregados e integrantes do governo a administrarem democraticamente esse fenômeno inerente às economias industrializadas, preparando o terreno para a adoção das regras que hoje se encontram cristalizadas no art. 9° da Constituição de 1988 e na Lei n° 7.783, que sancionou em 28 de junho de 1989.

    Como conseqüência natural da política de abertura adotada em relação às greves, o governo também se comportou de forma marcadamente liberal no tocante ao reconhecimento de entidades sindicais. Pois, é bom se lembrar que, até a promulgação da Constituição dei 988, o ministro do Trabalho dispunha de poder discricionário em matéria de legislação sindical. Prevaleciam, portanto, as antigas disposições da CLT relativas a esta matéria, especialmente aquelas constantes do Título V. Competia ao ministro, com exclusividade, determinar a expedição ou não de carta de reconhecimento sindical à associação profissional que entendesse merecedora da distinção, colhendo antes o parecer da Comissão de Enquadramento Sindical e, eventualmente, dos órgãos de informação.

    O governo do presidente Sarney, não obstante institucionalmente preso à legislação celetista, liberou o deferimento dos pedidos, de tal maneira que, entre março de 1985 e setembro de 1988, às vésperas da entrada em vigor da nova Constituição, haviam sido reconhecidas 2.269 entidades, das quais 823 representantes de segmentos profissionais ou econômicos urbanos e 446 rurais. No mesmo período foram concedidos, como exigia a legislação, 335 extensões de bases territoriais urbanas, abrangendo 2.235 municípios. Atendendo a reivindicações feitas pelos trabalhadores da categoria, em 4 de agosto de 1988 baixou o decreto nº 96.469, reconhecendo a Confederação Nacional dos Trabalhadores Metalúrgicos.

    Neste cenário de liberdade para a reorganização dos trabalhadores, aconteceu, com plena liberdade, o 2° Congresso Nacional da CUT, realizado nos dias 31 de julho, 1, 2 e 3 de agosto de 1986, no Maracanãzinho, Rio de Janeiro, RJ. Participaram 5564 delegados de 1.014 entidades sindicais. A CUT firmou-se como referência para a classe trabalhadora. Tem início sua consolidação nacional. Os delegados começam a discutir mudanças no Estatuto a partir das experiências acumuladas. Aprovam a estrutura vertical da CUT, criando os departamentos profissionais, ou seja, por ramo de atividade, o que trouxe à Central novas questões, como o sistema de contratação coletiva e seus reflexos na própria estrutura corporativa. A partir desse Congresso estruturam-se os departamentos nacionais dos bancários, metalúrgicos, petroleiros, químicos e de educação, construindo-se articulações de comissões provisórias em diversos outros segmentos: vestuário, urbanitários, construção civil, transportes. O contrato coletivo de trabalho passa a ser o ponto central dos debates sobre a democratização das relações trabalhistas.

    Portanto, diferente das atuais tentativas de abolição das conquistas históricas dos trabalhadores, como as propostas de alteração da CLT e do Sistema Previdenciário, nos governos FHC e Lula, Sarney procurou reforçá-las, como foi o caso tanto da Juntas de Conciliação quanto a decisão política de Sarney em universalizar a cobertura do INPS (atual INSS). Quanto a este tema, Sarney tinha a preocupação em proteger não apenas os trabalhadores que possuíam uma boa base organizacional e uma grande capacidade de mobilização. Para estes, bastava o fato do Presidente não tratar suas greves e manifestações com arbítrio e repressão; e de garantir mecanismos institucionais que preservassem seus salários, como os reajustes periódicos que acompanhavam o índice inflacionário. O presidente se preocupava, principalmente, com aqueles setores marginalizados que nem no mercado de trabalho estavam e que, durante o regime militar, foram os que mais sofreram, mesmo durante o chamado “milagre”.

    Para se entender melhor esta questão, nunca é demais lembrar que, antes de 1985, quem não estivesse no INPS (hoje, INSS) não tinha direito a nada. Sarney criou a universalização da saúde, a proteção do homem do campo, pescadores, deficientes e todos aquelas categorias que não eram assistidas pelos mecanismos sociais do Estado. Criou, ainda, o direito à impenhorabilidade da casa própria, o bem da família, inovando no que seria também incorporado à Constituição: a preocupação em destacar que a propriedade deve ter um fim social e que se deve ter um limite existencial para a família diante dos credores. Estendeu aos pobres, ainda, o direito à cidadania, pois foi no seu governo que os analfabetos conquistaram o direito de voto.

    Durante o regime militar foram pouco significativas as discussões sobre a reforma agrária. Porém, em 1985, durante o governo Sarney, o plano de reforma agrária volta com tudo. Por decisão do presidente José Sarney, foi criado um grupo de trabalho interministerial encarregado de elaborar e apresentar um documento contendo as ações do governo e os instrumentos necessários à fixação do homem no meio rural. Em maio de 1985 o Ministro da Reforma e Desenvolvimento Agrário, Nelson Ribeiro, entregou aos dirigentes do Congresso Nacional e às lideranças dos partidos políticos o Plano Nacional da Reforma Agrária. A meta do PNRA era assentar 1,4 milhão de famílias em 4 anos, dentro de um contingente de beneficiários estimado 7 milhões de famílias, incluídos posseiros, arrendatários, parceiros, assalariados rurais e minifundistas.

    O jornal Folha de S. Paulo, de 28 de maio de 1985, publicou as principais medidas do Plano de Reforma Agrária, que no projeto tinha como prioridade a desconcentração fundiária nordestina. Fundamentada no “Estatuto da Terra” para ser discutida com sociedade civil, o projeto se tornou alvo de grandes debates públicos envolvendo sindicatos, ONGs e etc. Apesar disso, os ruralistas conseguiram impor diversos recuos na programação do governo. Embora Sarney não tenha conseguindo apoio do Congresso nesta área, em seu governo foram assentadas cerca de 10 mil famílias por ano. A área desapropriada por Sarney em cinco anos de governo chegou a 4 milhões de hectares.

    O governo da “Nova República” também atuou em outras áreas sociais, justificando o lema “Tudo pelo Social”, criado pessoalmente por Sarney: o vale transporte, a defesa das minorias (criou a Fundação Palmares, as delegacias de defesa das mulheres), o vale-refeição e o programa do leite, que antecipou a distribuição da cesta-básica e os princípios do que hoje os petistas chamam “Fome Zero”, mas que no passado, ironicamente, condenavam como assistencialismo.

    Por tudo isso, se consultados dados oficiais e os relatórios de instituições internacionais multilaterais, como o Unicef, durante o governo Sarney verificou-se o mais baixo índice de miséria no Brasil. Não coincidentemente, foi também no seu governo que se registraram as mais baixas taxas de desemprego em toda a História do País, o que é surpreendente, quando se analisa o contexto socioeconômico que herdou.

    A Diplomacia
    Durante a “Nova República” a política externa retomou sua importância, refletindo os ares democráticos do plano interno. O Brasil retornava o caminho da normalidade institucional. Assim, deu-se o reencontro com o mundo. Superamos por completo o isolamento. Cessaram as pressões, as críticas e, mesmo, as hostilidades que tanto haviam abalado a imagem do País nos anos anteriores, principalmente depois do governo Geisel.

    Em setembro de 1985, falando pela primeira vez na tribuna das Nações Unidas, Sarney afirmou: “Estamos reconciliados. A nossa força passou a ser a coerência. Nosso discurso interno é igual ao nosso chamamento internacional”.

    Com aquela proclamação o Presidente acentuava que, numa democracia, não há fronteiras entre a política interna e a política externa. A política externa do governo José Sarney, portanto, constitui um momento importante para a análise das mudanças na matriz da política externa brasileira nos anos 80, pois se situa entre as duas fases bem definidas, a política externa do regime militar e política externa neoliberal do governo Collor em diante. Nesse sentido, quais seriam as linhas de continuidade e ruptura no governo Sarney? A diplomacia do governo José Sarney caracterizou-se por manter o que havia de melhor na tradição diplomática do Itamaraty, mas eliminando os constrangimentos setoriais do período militar e patrocinando algumas inflexões diplomáticas importantes no que se refere ao encontro do Brasil com os vizinhos do Cone Sul.

    O contexto internacional dos anos 1980 era muito delicado e em franca transição. Foi caracterizado pela retomada da ofensiva dos EUA nos cenários mundial e regional, pela crise do campo socialista, pelas dificuldades do diálogo Norte-Sul, pela crise da dívida externa e a pressão das economias desenvolvidas sobre os países mais pobres. Assim, os novos condicionantes internos (abertura política e crise econômica) e externos, obviamente, afetaram a política externa brasileira. Era necessário buscar novas alternativas nas regiões menos desenvolvidas e em países em desenvolvimento, como a China.

    Nas relações hemisféricas, cabe lembrar as relações conflituosas com os EUA e a aproximação com os países da Bacia do Prata, em especial a Argentina, que culminaram com os tratados de integração na região. A relação de turbulência com os Estados Unidos desencadeou uma série de iniciativas em direção ao Sul. O relacionamento com países estratégicos provinha da necessidade de desenvolver projetos de cooperação em áreas específicas e como contrapartida ao desgaste nas relações com os EUA e a relativa perda de dinamismo nas relações com os países europeus.

    Como contrapartida, o Brasil desencadeou urna verdadeira ofensiva diplomática em relação aos países do campo socialista e aos países do Sul. Nesse sentido a URSS e alguns países do Leste Europeu significaram novos espaços de relacionamento, na busca de recursos e cooperação tecnológica. Mas foi no Oriente Médio, África e Ásia (em especial a China) que o governo brasileiro buscou aprofundar seu relacionamento comercial (vendendo nossos produtos de tecnologia intermediária e tropicalizada) e ampliando a capacidade diplomática do país. Ação que, hoje, cônscios do que vem representando a potência econômica chinesa para a economia mundial, mostrou-se extremamente correta.

    A América Latina, sem dúvida, foi o palco central das mais importantes ações diplomáticas durante do governo Sarney. No período, iniciamos a política de integração com a Argentina, pondo fim a uma longa história de desconfianças, rivalidades e competição. A utilização da energia nuclear, até então questão muito sensível, transformou-se em estímulo à cooperação pacífica e a um relacionamento de plena confiança e maturidade. Quando o Presidente Alfonsin convidou Sarney para visitar a usina de reprocessamento de urânio em Pilcaniyeu, onde jamais estivera presente qualquer autoridade estrangeira, de qualquer nível, o Presidente Sarney convenceu-se de que ali começava uma nova era nas relações Brasil-Argentina. E foi o que aconteceu. Tentando encontrar alternativas internacionais para a economia e sempre na vanguarda da Juta em defesa da Amazônia, foi Sarney o grande artífice do “Mercosul”, pois foi a força política que efetivamente viabilizou esse importante mercado no “Cone Sul”, simplesmente porque, ao remanejar as forças militares brasileiras do Sul para o “Projeto Calha Norte”, matou dois coelhos numa cajadada só: por um lado, permitiu a distensão das históricas desconfianças militares Brasil-Argentina na Bacia Platina e, ao mesmo tempo, viabilizou um importante projeto de defesa da Amazônia, com o “Projeto Calha Norte”.

    Os frutos dessa política têm sido colhidos até hoje, e muitas outras frentes de atuação internacional também foram abertas pelo Brasil. Criou-se a “Zona de Paz e Cooperação do Atlântico Sul”, no âmbito do qual foi possível ao Brasil interferir corno elemento político importante para o que os EUA, por exemplo, não invadisse a Nicarágua. Assim, houve a ajuda do Brasil na pacificação de conflitos na América Central.

    Participou-se, também, ativamente, desde sua instituição, do “Mecanismo de Consulta e Concertação Política do Grupo do Rio”. E em1988, o Brasil voltou a ocupar um assento não-permanente no Conselho de Segurança das Nações Unidas, depois de 20 anos de ausência daquele órgão. O lançamento da Rodada Uruguai do GATT, cor 1986, que havia suscitado grande polêmica internacional em razão da tentativa de inclusão nas negociações do item “serviços”, além de bens e mercadorias, contou com a decidida contribuição brasileira, pois o Brasil integrou todos os 15 grupos de trabalho da Rodada: assegurou-se a presença brasileira na discussão da regulamentação do comércio internacional nos mais diversos setores.

    A unidade lingüística do Brasil é, por outro lado, um ativo nacional que, no plano externo, incide na prioridade concedida tradicionalmente às nações africanas de expressão portuguesa. No governo Sarney, com o concurso do então Ministro da Cultura, José Aparecido, criou-se o “Instituto Internacional da Língua Portuguesa”, que hoje está em pleno funcionamento dentro do atual estágio de desenvolvimento da “Comunidade dos Povos de Língua Portuguesa.

      A Cultura

      A preocupação do Presidente Sarney com a cultura na Nova República foi um desdobramento natural de sua própria personalidade. Acadêmico desde 1980, tendo já escrito vários livros, no poder, Sarney não poderia se esquecer do elemento mais importante para uma nação: sua identidade cultural. Por isso, ele criou o Ministério da Cultura, pelo Decreto n°91.144, de 15 de março de 1985.

      Mas a sua luta nesta área não era coisa nova. Já em 1972, então senador pelo Maranhão, apresentou o projeto de lei número 54, que “permitia deduções do imposto de renda das pessoas jurídicas e físicas para fins culturais, a partir do exercício de 1973, ano-base 1972”. O projeto acabou arquivado. Em 1975 reapresenta o projeto de lei que tomou o número 56, que terminou igualmente arquivado. No mesmo ano de 1975 apresenta também o projeto número 80, que criava fundos financeiros para a área cultural. Em 1980, insiste. Apresenta o projeto número 128, que em sua emenda permitia “deduções no imposto de renda das pessoas físicas e jurídicas, para fins culturais, a partir do exercício financeiro de 1981, ano-base de 1980”. Foi igualmente arquivado. No mesmo ano de 1980 apresenta o projeto número 138, que isentava os ingressos de espetáculos cênicos de qualquer imposto, fosse estadual, municipal ou federal.

      Todos esses projetos de lei foram sistematicamente arquivados sob a alegação de que eram inconstitucionais, porque representavam despesas ou isenções que só poderiam ser criadas através de uma iniciativa exclusiva do Poder Executivo. Quando assumiu a Presidência da República, Sarney teve a oportunidade histórica de finalmente converter o projeto em realidade, transformando-o em lei. Foi o que aconteceu. A Nova República também inovou na área cultural com a promulgação da Lei Sarney de incentivo à cultura. Basicamente ela concedeu incentivo fiscal às pessoas jurídicas e físicas que doassem, patrocinassem ou investissem em favor de operações de caráter cultural ou artístico, O contribuinte - pessoa física - poderia abater da renda bruta de sua declaração de rendimentos os valores transferidos para o setor cultural até o limite de 10% da referida renda. Já o contribuinte “pessoa jurídica” poderia abater como despesa operacional os valores efetivamente transferidos para o setor cultural. Cumulativamente podia deduzir do imposto devido no valor equivalente à aplicação de alíquota cabível do imposto, desde que observado o limite de 2%.

      A Economia

      As questões econômicas mais explosivas que surgiram na “Nova República” tiveram origem mais atrás e estavam diretamente ligadas à opção errada do Brasil por um desenvolvimento sem sustentação, pois atrelado na falácia do padrão-dólar e na oligarquia financeira mundial. A falta de apoio dos partidos ditos progressistas na questão da moratória no governo Sarney - e a total incompreensão com relação às origens da questão inflacionária - foram as maiores omissões da mídia e da classe política na “Nova República”. Por exemplo, não é verdade que, durante o governo Sarney, tivemos altas taxas de inflação, muito menos hiperinflação, como veremos a seguir.
      O texto abaixo é do historiador marxista inglês Perry Anderson, pesquisador erudito e conhecido como um dos maiores críticos tanto do neoliberalismo quanto do comunismo de cunho soviético. Junto com Norberto Bobbio, era citado como um dos dois grandes pensadores vivos do século XX. Grande defensor da social-democracia foi autor de estudos importantes não só de História Contemporânea, mas também de clássicos sobre a formação do capitalismo e da modernidade, como “Linhagens do Estado Absolutista” e “Passagens do escravismo para o feudalismo”.
      Nesta transcrição de uma palestra, feita por Emir Sader, há uma análise interessante de Perry Anderson sobre a origem e o desenvolvimento do neoliberalismo desde a II Guerra Mundial. Na parte em que fala sobre a hiperinflação - e a posterior imposição das políticas neoliberais na América Latina - faz comentários reveladores e extremamente importantes para o governo Sarney, desmistificando a idéia imposta pela mídia de que o governo da “Nova República” convivia com uma hiperinflação crônica (o que efetivamente aconteceu, como sabemos, somente após o acirramento do processo sucessório, no final do governo, diante dos ataques de Collor e do medo de um provável governo Lula - fenômeno semelhante que também aconteceu nas últimas eleições presidenciais com o chamado “Risco Brasil”).
      Como consultor do Banco Mundial naquela época, o historiador mostra que membros daquele banco de “fomento” tinham razões políticas claras para enfraquecer o governo Sarney, pois este se mostrava como o único líder da América Latina resistente às pressões internacionais para que se adotassem as políticas neoliberais. Ou seja, a criação do mito da hiperinflação era uma forma de se forjar no Brasil, a partir de então, um modelo referencial (paradigmático mesmo) que pudesse quebrar as resistências de toda a América Latina ao neoliberalismo, como a História infelizmente viria a confirmar.

      O palestrante diz o seguinte:

      (sic) “Recordo-me de atua conversa que tive no Rio de Janeiro, em 7987, quando era consultor de unia equipe do Banco Mundial e fazia unia análise comparativa de cerca de 24 países do Sul, no que tocava a políticas econômicas. Um amigo neoliberal da equipe, sumamente inteligente, economista destacado, grande admirador da experiência chilena sob o regime de Pinochet, confiou-me que o problema crítico no Brasil durante a presidência de Sarney não era atua taxa de inflação demasiado alta — conto a maioria dos funcionários do Banco Mundial tolamente acreditava —, mas uma taxa de inflação demasiado baixa. ´Esperemos que os diques se rompam`, ele disse, ´precisamos de uma hiperinflação aqui, para condicionar o povo a aceitar a medicina deflacionária drástica que falta neste país`. Depois, conto sabemos, a hiperinflação chegou ao Brasil, e as conseqüências prometem ou ameaçam — conto se queira — confirmar a sagacidade deste neoliberal indiano”.



      Depois das resistências no governo Sarney, as pressões impostas aos governos neoliberais, como o de FHC, no Brasil, Menem, na Argentina, ao longo dos Anos 90, no sentido de se impor uma alienação/privatização das indústrias petrolíferas nacionais, portanto, nunca tiveram as razões monetaristas argumentadas pela mídia. O que pode respaldar a observação do historiador inglês é o fato de que durante o governo Sarney a inflação nédia do período (1985/1989) foi de 727,7%. No período seguinte (19901994), todos os indicadores pioraram, inclusive no front inflacionário, onde a média anual atingiu 1.321, 3%.
      Mas, mesmo não se atingindo um processo de hiperinflação, Sarney tinha consciência da necessidade de se atacar o processo inflacionário. Tomou posição, não se omitiu. Aliás, o erro pela omissão seria muito mais grave para o País do que os eventuais equívocos posteriormente constatados, Com uma base de sustentação política fraca e consciente de que novas medidas recessivas poderiam levar a uma situação de convulsão social, Sarney teve que assumir a responsabilidade em adotar medidas não ortodoxas duras. Sabia que as eleições de 1986 não poderiam transcorrer em clima tenso, tinha consciência de que setores radicais tanto da extrema esquerda quanto da extrema direita, num eventual cenário explosivo economicamente, seriam fortalecidos, o que inviabilizaria a formação de uma Constituinte construtiva, não revanchista. A frustração com a Constituinte, depois da população já ter se decepcionado com a morte de Tancredo, poderia desacreditar as soluções democráticas e impelir a população para novas aventuras autoritárias. Mas as eleições para a escolha dos constituintes se aproximavam.
      Portanto, certamente, não foi por omissão que as coisas não funcionaram na conjuntura econômica. Em 28 de fevereiro de 1986 o presidente tomou a decisão correta: decretou o congelamento geral de preços e salários. Em sessão solene transmitida pela TV, Sarney declarou guerra à inflação e conclamou todo o povo para o bom combate. Depois de anos de decisões tecnoburocráticas impostas ao povo, finalmente, o Brasil tinha identidade com o seu presidente. O Plano Cruzado combinava austeridade fiscal e monetária com a preocupação de elevar a renda dos assalariados, o que realmente conseguiu. Muda a moeda de cruzeiro para cruzado, congela preços e salários, extingue a ciranda da correção monetária e cria o seguro-desemprego e o gatilho salarial. Pela sua formação política social-democrática, o Presidente Sarney decidiu não aceitar soluções ortodoxas que implicassem em medidas recessivas e o sacrifício dos trabalhadores, como impunha o FMI e que fizera Figueiredo antes e absolutamente todos os posteriores presidentes. Quando a equipe econômica lhe informou que não haveria a reposição salarial, imediatamente o Presidente exigiu que se constasse no plano garantias nesse sentido. Aliás, houve, em todo o processo de criação e do lançamento do plano, divergências entre alguns membros da equipe econômica. Sempre que estas divergências eram apresentadas para o Presidente Sarney, principalmente quando se tratava do teor recessivo ou não do plano, da necessidade ou não de prejuízo para o poder de compra dos trabalhadores, o presidente interferia. Era a posição política do Presidente ante a frieza da tecnocracia. Neste contexto, muitas informações foram sonegadas ao Presidente. Mas, a verdade é que a equipe econômica, formada por muitos teóricos vinculados às universidades norte-americanas, passava as informações ao Presidente já selecionadas conforme seus pressupostos. Não é mera coincidência o fato de que muitos dos titulares dos principais cargos que decidem sobre as políticas macroeconômicas em quase todos os países “emergentes” (no Brasil inclusive) eram sempre escolhidos exatamente entre pós-graduados das universidades norte-americanas, que engendraram e vêm difundindo orquestradamente as medidas “globalizantes” e que provocaram os mesmos efeitos perversos no México, em países da Ásia, na Rússia, no Brasil e, há pouco, na Argentina.
      Mas todos eles sabiam que Sarney, pela sua influência católica e com grande simpatia pelas idéias keynesianas, seria um grande empecilho para o projeto neoliberal. O Presidente Sarney não tinha muitas opções, quando o assunto era a escolha de técnicos da área econômica, pois quase todos eles, dos quadros da própria estrutura do Bacen ou dos ministérios econômicos, tinham sido criados intelectualmente doutrinados por concepções monetaristas e neoliberais. Por exemplo, Pérsio Anda, um dos “pais” do “Plano Cruzado”, banqueiro, ex-presidente do Banco Central e do BNDES e professor da PUC/Rio, doutorou-se em economia pelo Massachusetts Institute of Tecnology (MIT-EUA). É um dos mais destacados integrantes do grupo de economistas-banqueiros saídos da PUC/Rio. Foi um dos fundadores do Banco BBA e hoje é um dos diretores do Banco Opportunity, controlado por Daniel Dantas. Representa este banco no conselho de administração da Vale do Rio Doce.

      No governo Sarney, ocupou uma diretoria do Banco Central, um cargo tecnocrático. Integrou o conselho de administração do Unibanco. O artigo que escreveu com André Lara Resende, intitulado “lnertial Inflation and Monetarv Reform in Brazil” e que foi originalmente apresentado em Washington, em dezembro de 1984, num seminário promovido pelo Institute for International Fconomics (o mesmo que organizou, em novembro de 1989, o encontro que estabeleceu o chamado Consenso de Washington), é considerado uma das principais bases teóricas dos planos de estabilização adotados no Brasil, principalmente o Plano Real. No começo de 1995, quando já assumira a presidência do Banco Central, passou o carnaval na fazenda do ex-sócio, o banqueiro Fernão Bracher presidente do Banco BBA, num momento em que o país enfrentava uma tempestade financeira provocada pela quebra do México e o Banco Central intervinha no mercado de câmbio. O BBA auferiu enormes lucros na área cambial a partir da implantação do Plano Real. Luiz Carlos Bresser Pereira, outro economista, fez o mestrado na universidade de Michigan (EUA) e doutorou- se em economia pela USP. Foi o coordenador financeiro da campanha eleitoral de FHC. No governo Sarney foi ministro da Fazenda, e no governo FHC foi ministro da Administração e Reforma do Estado (MARE) e ministro da Ciência e Tecnologia. Foi professor da Escola de Administração de Empresas da Fundação Getúlio Vargas (SP). Foi um dos tecnopols brasileiros a comparecer como convidado às reuniões que culminaram com a elaboração do conjunto de teses e doutrinas que configuraram o chamado “Washington Consense”. Mas, mesmo sem opção naquele momento e cercado por estas figuras manjadas, Sarney resistiu. O plano consistia em uma tentativa de combater a inflação sem comprometer o crescimento econômico e o bem estar social, rompendo assim com as práticas ortodoxas tradicionalmente adotadas no Brasil desde o início do século, que, como sabemos, defendiam o combate à inflação aliado à recessão. Mas, infelizmente, tinha os seus limites: as concepções monetaristas vinculadas ao padrão-dólar como moeda de referência internacional. Ou seja, diante da iminência de lançamento do plano, havia uma clara divisão entre as pessoas responsáveis, direta ou indiretamente, na implantação do plano: o Presidente Sarney defendendo concepções anti-recessivas e com preocupação social e aqueles que não conseguiam enxergar nada além da questão financeira. Sarney sabia não podia adiar decisões. Mas o plano tinha que sair logo. E assim foi feito.

      Sarney tinha convicção de que implantar a recessão para combater a inflação naquele contexto extremamente delicado seria um equívoco, dadas as desigualdades sociais e o estado de miséria em que vivia grande parte da população brasileira. Acrescentem-se ainda as próprias peculiaridades da economia brasileira, na qual, devido ao longo período inflacionário, o aumento dos preços havia ganho um impulso “inercial”, isto é, os agentes econômicos responsáveis pela definição dos preços (principalmente grandes conglomerados transnacionais) tinham o hábito de remarcar os preços para cima sem que houvesse razões contábeis para isso. Dada a alta generalizada dos preços setoriais, um reajuste podia não ter motivos claros.




      Esperava-se que, num intervalo de 12 meses, a população se “acostumasse” com preços estabilizados e a inexistência da correção monetária fizesse com que o impulso inflacionário diminuísse ou até desaparecesse, estancando o fator inercial.

      Os primeiros resultados foram espetaculares. O presidente obteve aprovação quase unânime da população. Mais de 95% do povo apoiava o “Plano Cruzado”. A imprensa aderiu imediatamente. Até a IV Globo criou uma vinheta sugestiva: “tem que dar certo”. Quase todos os cidadãos aderiram auto-proclamando-se “fiscais do Sarney”, o que foi a maior mobilização política da cidadania brasileira. Surgiram associações de defensores da ordem econômica, o povo se mobilizou. Choviam reclamações na SUNAB. A adesão da intelectualidade foi quase total. Os partidos políticos que recentemente atacavam Sarney aderiram em massa ao presidente. A esquerda, inclusive o nascente P1, perdeu o discurso e ficou na dela, fazendo biquinho, gorando o plano e esperando velho “quanto pior melhor” - Como pregar o socialismo se o próprio governo o adotara?

      Ao mesmo tempo, esperava-se um deslocamento do capital imobilizado nos ativos financeiros para o setor produtivo da economia, enquanto os salários se valorizavam, passando a ter efetivo poder de compra. Pode-se falar inclusive de uma real distribuição de renda, se for observado que o consumo de certos produtos básicos cresceu inesperadamente nos primeiros meses do congelamento.

      De fato, o Plano Cruzado trouxe, por exemplo, uni rápido aumento no consumo de remédios e produtos farmacêuticos em geral: a população brasileira mais pobre, embora doente, nunca tivera dinheiro para comprar remédios. Agora uni pouco de dinheiro estava disponível, Outro exemplo significativo encontrava-se no consumo de colchões, qne apresentou rápido crescimento nas grandes cidades. Pensando-se nas favelas, onde muitas vezes pessoas amontoam-se nas mesmas camas, pode-se facilmente imaginar o que ocorreu. Também o consumo de carne disparou: o brasileiro pobre voltou a consumir proteínas.

      O esforço da Nova República, com o plano Cruzado, não daria certo, como a História comprovaria, muito mais pela insistência da área econômica no aspecto monetário e da ação deletéria dos grandes conglomerados transnacionais, do que pefa capacidade de decisão e liderança do Presidente. Não deu certo não pelo que foi feito, mas pelo que se deixou de fazer, principalmente porque não houve condições políticas para se romper com os pressupostos errados do monetarismo da própria equipe econômica. A existência de uma economia altamente oligopolizada, com o controle de 60% por parte de transnacionais, fez com que fosse fácil para os interessados na internacionalização definitiva de nossa economia atuarem contra o plano econômico, utilizando-se de pressões, controle sobre os fornecedores, etc..

      Afirmar, hoje, no entanto, que Sarney, como estadista, estava errado ao implantar o plano, constitui simplismo analítico dos mais absurdos e irresponsáveis. Depois de passados vinte anos, quando já sabemos os resultados históricos do que se passou, fica fácil dizer o que não deveria ter sido feito. Diante da infinidade de opções que se apresentavam ao governo Sarney, naquele momento, é fácil criticar uma decisão que, a priori, já sabemos que não deu certo. É como se um esperto qualquer, já conhecendo o que aconteceu na História da Franca, dissesse que Napoleão era “burro” como estrategista porque invadiu a França e se deu mal. E que Hitler era duplamente “burro” porque, mesmo sabendo da história de Napoleão, também invadiu a Rússia e acabou detonado em Stalingrado. Esta análise é por demais superficial e desonesta, e desconsidera que, quando se tem que tomar uma decisão, no desenrolar do processo histórico, há no máximo suposições e projeções sobre os resultados, nunca a compreensão acabada e perfeita sobre o futuro.



      Mas, o importante é a tomada de posição, não se omitir diante das adversidades. Foi o que aconteceu com o estadista Sarney. Não se omitiu diante do processo inflacionário. Tomou as decisões corretas diante do leque de opções que sua equipe econômica lhe fornecia. O problema, no entanto, não estava na decisão e na convicção do Presidente em acertar, mas nas opções apresentadas pelo contexto histórico. Não estamos falando de um tirano ou de uni rei absolutista, mas de um Presidente restaurador da democracia em nosso País, portanto, o chefe de uma equipe plural de assessores e auxiliares que deveriam lhe fornecer as informações corretas necessárias para que pudesse tomar decisões. É assim que as coisas funcionam nas democracias, principalmente no presidencialismo. E as informações da equipe econômica de então eram eivadas de pressupostos, embora tais pressupostos não tenham sido superados por todas as posteriores equipes econômicas dos presidentes Collor, Itamar, FHC e, agora, com Lula, todos iludidos pelas mesmas concepções monetaristas equivocadas que inviabilizaram o Plano Cruzado. Por isso mesmo, todos, absolutamente todos, até hoje, não acertaram. E aos futuros presidentes que persistirem no mesmo equívoco, fatalmente estarão fadados ao fracasso.

      A Preocupação com a autonomia tecnológica

      Na área de pesquisa tecnológica, Sarney também herdou uma situação bastante difícil. O governo Figueiredo tinha abandonado por completo a política de desenvolvimento do setor em decorrência dos problemas financeiros. Laboratórios paralisados por falta de recursos, a comunidade científica descrente com o poder público e o investimento no setor descendo a níveis baixíssimos, o que nos colocava em posição de inferioridade, mesmo em comparação com países semelhantes ao nosso nível técnico-científico. No seu governo, diante da gravidade do problema, Sarney tentou inverter a situação - e conseguiu - e nos esforçamos para manter uma média anual de investimentos acima de 1% do Produto Interno Bruto (PTB).

      Numa comparação entre os investimentos por PIB, Brasil e Estados Unidos, hoje, gastam 0,6% e 0,74% respectivamente. Porém, não podemos esquecer que estamos falando do PIB norte-americano, muito maior que o brasileiro. Assim, os US$60 mil per capita que o Brasil investiu no ano retrasado, por exemplo, são equivalentes ao investimento feito pela China em 1935. No Brasil, só tivemos investimentos superiores ou igual a 1 %, na Era Vargas, no “Milagre” do Regime Militar e durante o governo Sarney. Nos dois primeiros, passávamos por um período de crescimento acelerado. Durante a “Nova Republica”, em profunda crise econômica herdada, com a explosão da dupla crise da inflação e da dívida externa, mesmo assim insistimos e conseguimos atingir importantes 1% do PIB voltados para a os investimentos em ciência e tecnologia, fato que se reverteu a partir do governo Collor.

      A luta pela Amazônia

      Sarney foi o primeiro amazônida a assumir a Presidência da República. Não foi à toa que o destino o levou a se eleger senador pelo Amapá, uma terra síntese daquela imensa região brasileira. Seu período de governo, com certeza, foi o mais rico em transformações institucionais, em clima de liberdade e democracia. Não tivesse a tormentosa missão de “conduzir o Brasil na travessia das margens do autoritarismo às margens da democracia”, com certeza, teria sido aquele que daria seqüência à integração do território nacional, nas picadas abertas por Getúlio Vargas e JK, praticamente os dois únicos governantes a pensarem o Brasil no seu contexto geopolítico de território que ainda não foi completamente ocupado por seu povo. Os militares conceberam a Transamazônica e as Perimentais, mas a tecnocracia, sem sensibilidade política necessária, nunca revelou muito êxito no alcance de seus objetivos.

      Foi o presidente Sarney, 25 anos após o impulso da Belém-Brasília de 3K, o responsável por implementar e articular uma política de desenvolvimento para a região. Fortaleceu os órgãos regionais como a Suframa, o Basa e a Sudam e apoiou a transformação dos territórios federais em estados (Roraima e Amapá) em estados. De um ano para outro, triplicou o orçamento da Sudam. Entre algumas das ações desenvolvidas na região destacaram-se o programa de zoneamento econômico-ecológico da Amazônia, usando técnicas de sensoriamento remoto e os estudos para o aproveitamento integrado das bacias dos rios Madeira, Branco, Trombetas e Baixo Tocantins.

      Foi elaborado o 1º Plano de Desenvolvimento da Amazônia e reorientados os programas de pólos agroindustriais e agro-minerais da Amazônia, complementando as ações da reforma agrária, além do desenvolvimento de um programa de produção de alimentos que beneficiou mais de 56 mil famílias de pequenos produtores. O então presidente preocupou-se com a recuperação do Banco da Amazônia e com a consolidação da Suframa como pólo de desenvolvimento irreversível, sendo que em seu governo foram aprovados cerca de 200 projetos em um total de 475 em 10 anos, 70 mil novos empregos foram criados e o índice médio de nacionalização atingiu 75%.

      E aquela que seria a obra mais relevante e audaciosa acabou não se configurando devido à inexorabilidade do tempo e ao bombardeio da mídia paulista: a Ferrovia Norte-Sul. Mas ficou A semente e a idéia, que é hoje um bandeira de luta para o desenvolvimento de uma vasta região, de Goiás ao Pará, ansiosa por ser empunhada por um presidente da República que, mais unia vez, prossiga os rumos de Vargas e JIK.

      A concentração de esforços e meios para implantação da Ferrovia Norte-Sul impunha-se como fator de integração do País. Esta ferrovia, com vértice em Itaquí, viabiliza o escoamento da produção explosiva de grãos no Centro-Oeste e cria um novo eixo de modernização da economia nacional, interligando a região geoeconômica de Brasília com a Amazônia e o Nordeste — estratégia válida no sentido de abrir novas e grandes áreas de expansão, com aproveitamento inteligente e à luz da ciência ambiental, em reação à exploração predatória e improvisada que vinha ocorrendo na Amazônia.

      Cumpriria, assim, ao Governo do Presidente Sarney, com o projeto da Ferrovia Norte-Sul, também o objetivo de reduzir o desequilíbrio regional existente entre o norte e o sul do País e abrir grandes oportunidades para o empresariado nacional marcar presença no aproveitamento da imensa riqueza na produção agrícola, mineral e florestal.

      Resultados alcançados pelo Governo Sarney na Região Norte:

      • Expressivo Programa de Zoneamento Econômico Ecológico da Amazônia com a utilização técnica do sensoriamento remoto.

      • Estudo para aproveitamento integrado das bacias dos rios Madeira, Branco, Trombetas e Baixo Tocantins e Araguari, em cooperação técnica com a OEA.

      • Elaboração do programa de pólos agrominerais da Amazônia, complementando as ações da reforma agrária.

      • No âmbito social, além do bem sucedido “Programa do Leite”, foi realizado um programa de produção de alimentos que, em primeiro estágio, beneficiou mais de 56000 famílias de pequenos produtores.

      • O Basa - Banco da Amazônia - foi reformulado e modernizado, tendo diversificado suas linhas de crédito e áreas de atuação. Foi totalmente recuperado. Recebeu injeção significativa de novos capitais, o que lhe permitiu ampliar o seu papel de fomento às atividades produtivas.

      • A SUFRAMA, através de decreto do presidente Sarney, passou a incorporar ao seu Conselho os governadores de Rondônia, Acre e Roraima. Apesar da Zona Franca de Manaus abranger essas áreas, os seus governadores não participavam da Suframa.

      • Pólo de desenvolvimento irreversível, além de prorrogar a concessão de seus incentivos fiscais., somente em 1988, durante o Governo Sarney, foram registrados 190 projetos, num total de 175 em toda a sua história, produzindo cerca de mais de 75.000 empregos na região e produção de bens que atingiu um nível médio de 75% de nacionalização.

      • Foram compartilhados os incentivos do Decreto-Lei número 288 com a Lei de Informática (Lei 7.232), objetivando destinar recursos equivalentes ao valor dos incentivos voltados para o desenvolvimento tecnológico.

      • Foi diretriz do Governo José Sarney, ainda, a criação das condições que permitissem às empresas da Zona Franca de Manaus exportar substancialmente e aumentar a participação local no suprimento de insumos e componentes.

      Os territórios federais atuaram em perfeita consonância com as Diretrizes Gerais do Desenvolvimento Regional, tendo sido expressivos os trabalhos realizados de infra-estrutura básica, apoio social e econômico.

      Foram significativas as ações federais do Governo Sarney nas áreas de energia, telecomunicações, transportes, mineração e setores sociais, como:

      • a reativação do Polonoroeste;

      • a recuperação da Belém Brasília;

      • o projeto da BR-364 até Rio Branco;

      • a continuação do Programa Grande Carajás:

      • as hidrelétricas de Balbina e Samuel;

      • a linha de transmissão Tucurui-Nordeste;

      • a criação do Programa de Apoio às Micro e Pequenas Empresas no Norte e no Nordeste;

      • a aplicação de 30% dos recursos do FND — Fundo Nacional de Desenvolvimento -, obrigatoriamente direcionados para o Norte e o Nordeste sob forma de financiamento;

      • além dos programas agrícolas, industriais, urbanísticos e de fortalecimento dos estados e municípios;

      • Ponte Tancredo Neves e Sistema da SRI 56;

      • Colégio Agrícola pelo País;

      • Estímulo às escolas técnicas, inclusive a do Amapá;

      • Usinas hidrelétricas Roque de Sousa Panafort e Coronel Arlindo Eduardo Correia (para município do Oiapoque, Calçoene e Amapá);

      • Mandou que o presidente do Banco do Brasil, Dr. Camilo Calazans, não deixasse que o Amapá sofresse, diferente de todo o País, a eliminação de crédito agrícola subsidiado.

      Merece destaque o “Calha Norte” e o “Nossa Natureza”, programas válidos e imperiosos instrumentos de desenvolvimento, capazes de defender os interesses nacionais na Região Amazônica, ao aproveitar de modo racional as riquezas, preservando o ecossistema e de operar nessa imensa região segundo prioridades que servissem aos princípios e objetivos verde-amarelos, sem imposições e interferências limitadoras de nossa soberania.

      O “Projeto Calha Norte”, em especial, foi incompreendido e deturpado por aqueles que não tinham, então, uma visão de futuro. Projeto que, hoje, em decorrência dos últimos acontecimentos no âmbito internacional, sob a égide dos EUA, mostra-se cada vez mais imprescindível, na medida em que tinha objetivos não apenas geopolíticos. Na verdade, preocupava-se em levar àquelas populações setentrionais assistência, cidadania e possibilidades de integração com o resto o País. Ou seja, era um projeto multiministerial que contava com a participação conjunta das áreas de defesa, educação, saúde, saneamento, habitação, meio ambiente, transporte, energia e telecomunicações. O seu princípio básico, desde o inicio, foi ode promover a ocupação racional dos vazios amazônicos, respeitando as características regionais, as diferentes culturas e o meio ambiente.

      Pelo planejamento original, deveria estar concluído até o final de 1997, mas a partir do governo Collor foi sendo esvaziado — isto é, sabotado — pelos governos que se sucederam. Porém, fatos recentes demonstram a sua importância para a segurança da Amazônia e o bem-estar de seu povo.

      Este material, em grande parte, foi baseado em verbete do DICIONÁRIO HISTÓRICO-BIOGRÁFICO BRASILEIRO, da Fundação Getúlio Vargas: Sarney - FGV





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