Escrevendo sobre Carlos Castelo Branco, o maior jornalista político dos últimos 50 anos e um dos maiores de todos os tempos no Brasil, discuti se o jornalismo era um gênero literário. Mesmo estando fora da classificação da teoria literária, através dele se pode fazer literatura. E é o que muitas vezes se faz, em textos que aqui mesmo na Folha se leem todo dia, de Clóvis Rossi a José Simão, passando por todos os outros nos dias bons. Agora o tema volta a preocupar os que fazem jornal na Europa, e o que se discute é como ele passou de um ofício individual para uma tarefa de atelier, coletiva. Eugenio Scalfari e Jesús de Polanco, que, quase ao mesmo tempo, fundaram "La Repubblica", na Itália, e "El País", na Espanha, transformaram a concepção de jornal, que passou a privilegiar a qualidade do texto, sua relação com a cultura, de tal modo que fosse ao mesmo tempo uma fonte de informação e um gosto intelectual. Antes deles, "Le Monde" estava neste rol. E até hoje são os três melhores jornais da Europa e estão entre os dez primeiros do mundo, inigualáveis no primor da sua linguagem. Cada matéria é cinzelada como uma obra de arte. Em recente aula em Roma, Scalfari, já além dos 80 anos, afirmou, para escândalo dos jovens redatores, que o jornalismo "é um ofício cruel". Há 20 anos, ele definiu: "Periodista es gente que le dice a la gente lo que le pasa a la gente". Por que essa mudança brusca? Velho, ele acusa o tempo. Argumenta que hoje a verdade não é fácil de ser encontrada entre tantas verdades, num mundo no qual temos que escolher a nossa verdade. Os jornais passaram a ter de navegar numa linha perigosa e invisível, totalmente subjetiva, entre a nudez da vida privada e os deveres da imprensa com a vida pública, aquilo que na Itália, e agora no Brasil, entrou na moda, a sagrada lealdade republicana: democracia e solidariedade entre as classes, liberdade como valor fundamental unida à ideia de igualdade. Quando o jornalista tem de "dissecar as pessoas, os personagens da atualidade, despindo-os além de sua aparência", a isso ele chama de cruel. O problema da privacidade desapareceu, e ela passou a ser regulada pelo sentido de responsabilidade de cada jornal e jornalista. Aí, a controvérsia aborda a imprensa marrom, os jornais de escândalo, a necessidade de atender ao gosto dos leitores, o que nós dizemos "vontade de ver sangue". Scalfari afirma orgulhoso que "La Repubblica" e "El País" nunca entraram nessa invasão, exceto quando "a vida privada se entrelaça com a vida pública". E amedronta-se com a profecia terrível: "O jornal impresso vai acabar em 2018". É triste ouvir isso. Eu e Elio Gaspari temos como dogma que o jornal e o livro nunca acabarão. A internet que se cuide.
JOSÉ SARNEY é ex-presidente da República, senador do Amapá e acadêmico da Academia Brasileira de Letras e da Academia das Ciências de Lisboa
jose-sarney@uol.com.br
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