Meditação da Páscoa
Um domingo, na Brasília dos anos 60, no pátio interno de uma daquelas superquadra que Lúcio Costa escreveu, mas não aconteceu na memória do projeto da cidade e que deveriam ser "reservadas à convivência" no "silêncio das luzes baças", encontraram-se José Monteiro de Castro, mineiro de grande talento que viveu os maiores momentos da história contemporânea brasileira, e Pedro Aleixo, outro extraordinário homem público, modelo de correção e mestre das melhores artes da política. Aquele mesmo Pedro Aleixo, coberto de cicatrizes, sendo a maior de todas a deposição da presidência da Câmara dos Deputados, em 1937, quando Getúlio Vargas fechou o Congresso, baniu as instituições e decretou o fascista Estado Novo.Ambos encontraram-se em frente a uma banca de jornal. Pergunta o primeiro: "De onde estás vindo, Pedro?" Responde: "Da santa missa." "Mas Pedro- retruca o primeiro - da missa? Você, um homem dessa colossal inteligência, assistindo a um ritual monótono e vazio, ouvindo lugares-comuns de um pároco quase sempre pouco inteligente?" "É", retrucou Pedro Aleixo. "Sim, estou vindo da missa e muito feliz. E você, José Monteiro, o que fez?" "Ora, passeei pela quadra, andei pelo parque, li jornais e vim comprar as revistas da semana." Pedro Aleixo fez uma pausa e, como quem não queria discutir, concluiu irônico, voz macia: "Ambos, pelo visto, não fizemos nada. Passamos o tempo, procurando coisas para enchê-lo, e só. Agora, quero assinalar uma diferença fundamental no que fizemos. Se Deus existe, o que eu acredito com inabalável fé, estarei de bem com Ele e comigo, cumpri meus deveres. Agora, você, José Monteiro, vai ficar muito atrapalhado." E deu uma gargalhada meio contida.Nesse diálogo, descontraído e simples, colocava-se o mistério maior de nossas vidas: a crença de que há algo de transcendental em nosso destino que não pode ser facilmente abrangido pela razão, pelos simples critérios de pensar. Santo Agostinho sintetizou muito bem esse sentimento quando se recusou a explicá-lo e invocou o privilégio de crer. Essa é uma faculdade que está além do racional, e a ela se chama fé. Ter capacidade de ter fé. Viver sem ela é uma condenação, quase maldição. É o terreno de uma solidão incontornável, de uma sensação de abandono na qual reside a tristeza em seu estado de pureza absoluta.A Semana Santa nos remete aos ensinamentos básicos do cristianismo. Quantas vezes, todos os anos, todos os dias, a cena da crucificação se repete, sem envelhecer. O símbolo da cruz é o do sofrimento, mas, sobretudo, o da ressurreição. São Paulo afirmava, e nunca é demais repetir, que sem ressurreição não há cristianismo. Muitos vêem Cristo sem a cruz, outros, a cruz sem Cristo. Mas é impossível qualquer separação. São indissolúveis no mistério da Paixão, que só pode ser entendido pela fé. No Padre Vieira há um sermão, o do mandato, entre vários que ele pregou sobre o mesmo tema, que lembra São João na passagem evangélica: "Jesus amou os homens até o fim". E pergunta Vieira: "Ah, se colocássemos nos homens esse coração de Cristo e em Cristo o coração dos homens?" A chave para penetrar no simbolismo da Semana Santa é só uma: a fé. Ela leva-nos à missa, sublima-nos na oração, faz-nos participar da liturgia, sabendo que tudo isso é tudo e não é nada, porque o espírito de Deus é a essência maior de todas as coisas.E Maritain ensinava-nos que "Deus se conhece em função de sua essência". Uma boa meditação para a Páscoa.
José Sarney é ex-presidente da República, senador do Amapá e acadêmico da Academia Brasileira de Letras e da Academia das Ciências de Lisboa
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