sexta-feira, 5 de setembro de 2008


Maletas e mulatas

Antigamente, as discussões políticas eram mais suaves. D. Pedro II machucou-se numa viagem à Europa e, na volta, desembarcou de muletas. Os jornais noticiaram a recuperação do Imperador, mas um deles, graças a esses antigos pastéis de imprensa, trocou um detalhe importante. A prova de sua recuperação, dizia a noticia, era que sua Majestade já estava andando, sustentado por duas “muletas”. Pois, não é que em vez de “muletas”, a notícia informava que o Imperador saíra apoiado em “duas mulatas”! Foi o bastante para que se ameaçasse a liberdade de imprensa e a discussão se resumisse a saber se o erro fora intencional ou não.
Agora, dizem que a Abin comprou umas maletas tão diabólicas que ouvem até sussurros de namorados. Se a bisbilhotagem ficar debaixo de uma árvore ou escondida num carro, as confissões ou excessos de carinho podem ser captados e gravados. Para tranqüilizar, a Abin comunicou que o Exército também tem as suas maletas e que elas, em vez de permitirem a escuta, só rastreiam. Não falam, só ouvem. Mais tranqüilos ainda ficamos quando a firma fabricante das maletas entra na discussão e afirma que sua maleta é burra e não grava; o Omni-Spectral Correlator (é esse o nome do bicho) faz apenas uma “escuta ambiental em um campo geográfico pequeno, desde que com transmissor de alta definição”. Assim, o caso das maletas é bem mais sério do que o das duas mulatas que amparavam o Imperador – o que não seria nada mal para o velho soberano.
Pior seria se, em vez de maletas, esses órgãos do Estado tivessem adquirido duas muletas para ampará-los nesta situação.
A verdade é que as tais maletas não são capazes de gravar músicas, pois, então, agora estariam, nostalgicamente, tocando as antigas e populares canções do nosso Waldick Soriano, que nos deixa saudades e a sua famosa “Eu não sou cachorro não”, muito popular no seu tempo. Eu, graças a Deus, venho do tempo das modinhas de Catulo da Paixão Cearense (“Luar do Sertão”), Vicente Celestino (“O Ébrio”), Noel Rosa, Herivelto Martins (“Chão de Estrelas” ), e fui passando por Maysa (“Tristeza não tem fim”), Elizete Cardoso, Ângela Maria, Dolores Duran e dos sambas-canções, até cair na voz delicada e envolvente de Nara Leão e, para não ser feminista, Roberto Carlos, os Novos Baianos, Luiz Gonzaga e João do Vale. E, hoje, estou às voltas com Gilberto Gil, Caetano, Chico Buarque, Jorge Mautner, Betânia e a formidável e grande expressão da música brasileira: Alcione.
A verdade mesmo é que entre saudades e músicos, o grande prazer, hoje, não é ouvir musica, mas ficar calado, com medo do telefone. As tecnologias modernas destruíram a privacidade e estão criando um mundo de ouvidos moucos, bocas fechadas e olhos abertos.

José Sarney é ex-presidente, senador do Amapá e acadêmico da Academia Brasileira de Letras e da Academia de Ciências de Lisboa.

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