E o Mestre foi enterrado. Não foi um enterro daqueles que todos choram baixinho, dos que bebem cafezinho e apenas oram de cabeça baixa, dos que se vestem de negro pra dar pêsames quase em silêncio. A despedida do Mestre foi digna dos eventos do Laguinho, enterro por aqui vira acontecimento, com todo o respeito que as famílias merecem. Os poucos vestidos de negro se apagaram entre as saias floridas, o choro só saiu livre quando começaram a cantar os primeiros ladrões na casa que tantas e tantas vezes foi palco de grandes marabaixos. “Eu tinha mamãe, eu tinha, eu tinha meu passarinho, estava preso na gaiola, bateu asa e foi embora...”. E bateu asas o nosso pássaro Pavão, apelido de infância por dançar cheio de “pavulagem”. Foi esse o ladrão escolhido entre os muitos já cantados pelo Mestre para começar a cerimônia de sua despedida. Não podia ser diferente o adeus do Mestre, que teve em toda a existência a companhia das cadências das caixas e dos ladrões.
Na casa que tantas vezes o Mestre abriu as portas para receber seus convidados obedecendo a tradição familiar de oferecer comida e gengibirra com muita alegria, saias, flores e cantoria para saudar a Santíssima Trindade e o Divino Espírito Santo, tudo lembra marabaixo. Na sala, as imagens dos santos festejados, enfeitados com fitas e iluminados por velas; na cozinha, penduradas no teto, caixas de marabaixo decoram junto com os grandes panelões onde são feitos os caldos e grandes garrafões e baldes que servem pra guardar a gengibirra. Durante todo o ano, respira-se cultura na casa. Sem a intenção de ser, a casa do Mestre acaba sendo um pequeno, porém rico, museu vivo do marabaixo. Foi nessa casa que o Mestre cultivou a tradição e deixa para seus muitos descendentes a mesma missão que recebeu de seus pais, de não deixar a cultura morrer.
Toda a passagem de Raimundo Lino Ramos por nosso mundo foi em função dos festejos da Santíssima e do Divino. Carpinteiro aposentado, neto de Julião Ramos, que junto com Raimundo Ladislau transformou o marabaixo em nossa maior referência cultural, seu Pavão participava de todos os momentos dos festejos. Fazia caixas, gengibirra, buscava o mastro no Curiaú, enfeitava, levantava a bandeira, cantava e tocava, não perdia um só momento da festa. Ainda recentemente lembrou de sua infância junto de outras hoje tradicionais famílias de negros que moravam nas proximidades da Igreja São José e Praça do Barão. Ele recorda quando foram “convidados” a sair do lugar onde nasceram e dançavam o marabaixo, para morarem na Favela e no Laguinho, pois no lugar seriam construídas as residências e prédios oficiais. “Quando eu tinha 13 anos, junto com meu avô e toda minha família dançávamos marabaixo em frente à Igreja São José, o padre batia o sino, tinha foguete e em cima dos mastros vinham dois meninos com as bandeiras do Divino e da Santíssima Trindade, tinha também a Carioca, outra dança africana em que os homens se vestiam que nem pro marabaixo e usavam um instrumento feito de garrafa de vidro, era a buzina que fazíamos quebrando o fundo da garrafa, depois era só molhar e soprar ”, falou o Mestre em entrevista em 2008.
Pavão era um dos últimos descendentes desta época que lúcido, ainda contava as histórias do início da colonização dos bairros mais tradicionais de Macapá. Brigão por natureza, foi esse modo de defender o que achava certo que contribuiu para que o marabaixo fosse respeitado até por quem defendia as Leis. Foi numa noite de marabaixo que um juiz federal se incomodou com os foguetes e tocar das caixas e achou que podia ir contra o povo e mandar parar a festa. O Mestre ensinou quem respeitava quem e a cultura e tradição venceram: o juiz foi embora do Amapá e ninguém sente saudades.
Outra briga boa e memorável foi na construção do Centro de Cultura Negra quando junto com tia Chiquinha, Seu Bolão, Dona Ondina, Seu Arin e muitos outros negros raçudos do Laguinho não se intimidou com as máquinas e autoridades que não queriam que o Centro fosse construído. Com pedaços de pau, terçados e a garra dos descendentes de escravos expulsaram os que eram contra a obra e derrubaram o tapume. Foi também a insistência de Mestre Pavão que ajudou para que fosse criada uma Lei que fez com que o Ciclo do Marabaixo entrasse para o calendário cultural oficial do Amapá. Brigava também quando alguém exagerava na gengibirra e queria bagunçar com sua festa. Brigava com autoridades, como brigava com qualquer outro, com a mesma intensidade com que tratava muito bem quem ia em sua casa se divertir ou em busca de informações. Suas brigas caíram na boca do povo e se transformaram nas mais engraçadas histórias contadas pelos campos do Laguinho e espalhadas de boca em boca. Pavão é personagem de inúmeras piadas junto com seu irmão Paulino Ramos.
Entre tristeza, lembranças, marabaixo e muitas histórias o Mestre foi embora. No velório, todos os que no dia anterior estavam no último marabaixo que ele ouviu no pátio de sua casa dançado pelo povo que foi seguir a tradição. No domingo, tocando caixas e cantando ladrões, cantadeiras e dançadores foram buscar a bandeira do Divino Espírito Santo para levar pra casa da festeira Naíra. O som que o acompanhou durante toda a sua vida, que por ele foi tocado desde a infância não foi suficiente pra fazê-lo levantar da cama, apenas pediu que não deixassem a cultura do marabaixo morrer. Talvez já soubesse que iria e por isso deixou o recado. No momento final, a frase dita pelo padre deu mais incentivo para que o tradição não acabe nunca: “enquanto houver um negro que os tambores não se calem”. Com certeza não se calarão, o Mestre enraizou a cultura do marabaixo na família e encantou brancos, mestiços e gente de todas as raças . A mesma persistência que trazia no sangue que o levou a fazer e participar das festa mesmo quando a diabetes lhe tirou as pernas, o mesmo sangue corre nas veias dos filhos, netos e bisnetos que já se encarregaram de abrir sempre casa do Mestre para que o marabaixo não acabe nunca.
Mariléia Maciel é assessora de comunicação no Amapá
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