segunda-feira, 15 de junho de 2009

A beleza, a força e as advertências da literatura amazônida...

Chico Bicho, de Arthur Engrácio

A barraca, paxiúba e palha, ficava oculta entre altas castanheiras e touceiras de bambus. Os canoeiros passavam ao largo, nunca se atreviam a encostar. As velhas se benziam horrorizadas quando lhe ouviam o
nome, "cruz-credo, vai-te pra Iá demônio! . . ."
- Ali não mora gente, não, doutor. Ali quem mora mesmo é um monstro! - me disse João Queimado, numa noite em que, para fugirmos aos carapanãs, saímos a faxiar mandiís beira-rio-acima.
Estranho naquele meio, há pouco chegara da cidade para fazer umas demarcações pro coronel Venâncio.
Surpreso, a curiosidade a catucar o quengo, reatei conversa com o canoeiro velho.
- É verdade o que você diz, João? E que monstro é esse?
Meu parceiro de montaria, preto rijo, sabe-se Iá com quantos janeiros na cacunda, cuspinhou grosso para um
lado, tirou a brejeira da boca, colocou-a detrás da orelha e não se fez de rogado.
- Pois, olhe, o doutor não sabe, não? É o Chico Bicho. Mora ele com cinco filhas e todas elas ele já papou.
Todas eu vi menininhas, sêo doutor e que lindeza de crianças! Desde que ficou viúvo, o peste deu de perseguir
elas, que já eram moçotas, com o olho da malintenção. E foi mexendo uma por uma até que chegou na mais nova, a Julica. Com essa, que era um pouco arisca por via da sua boniteza, a coisa não foi muito fácil. Era na boquinha da noite. Ele chamou a filha pro quarto e quando a tola ali chegou, ele já todo nuzão, no jirau, mandou que ela cocasse a costa dele. A pobrezinha, na sua inocência, começou a fazer o serviço quando o malvado agarrou ela e quis lhe chamar pros peito. Então, ela se apercebeu da manobra e, dando duas fortes dentadas na mão do praga, disparou rumo da mata. O doutor pensa que ele se deu por achado? Qual o quê! Bateu a mão no rifle, que tinha sempre bala na agulha, e mandou tiro por cima da cabeça de Julica que, coitadinha, com o susto caiu por terra. Ele correu então pra ela e, ali mesmo, no meio do cerrado, com as outras espiando, mandou o mangalho na filha.
João Queimado coçou a carapinha já quase toda embranquiçada e deu uma forte cachimbada, deixando o cuspo escorrer pelos beiços moles de preto velho.
Prosseguiu.
- E não ficou só nisso, não, doutor! Nossossinhor havia de castigar o diango. Quando é noite, às sextas-feiras, de longe a gente escuta aqueles grunhidos, feios, medonhos. É Chico Bicho e as filhas, tudo virado porco, que saem pelos arredores, fuçando o chão, atrás do baco-baco.
- Isto é fato, João?
- Como não, homem de Deus!
-Pergunte pra qualquer dos viventes desta redondeza e eles hão de lhe contar a mesma história.
Estava realmente intrigado com aquilo. Podia lá ser uma coisa daquela? Mergulhava nessas reflexões, quando meu companheiro me puxou pela ponta da camisa e falou, quase em surdina.
- Olhe ali, doutor, nem a propósito.
Sem percebermos. havíamos entrado por um igapó onde as águas permitiam chegar-se bem próximo à barraca de Chico Bicho. Ocultos, agora, por trás de uma grossa sumaumeira, pude confirmar o que João Queimado me tinha tinha relatado há pouco. Esquecia-me de dizer que era uma sexta-feira, dia do encantamento. Jogo Queimado apagou o cachimbo, eu joguei o cigarro nágua. E, como dois maracajás prestes a saltar sobre a presa, ficamos de olho pregado na direção de onde vinham os grunhidos.
Primeiro uma luz se acendeu. Depois, um atrás dos outros, os porcos começaram a sair, a catinga se espalhando longe, o trac-trac das mandíbulas repercutindo pelo fechado da mata. O preto velho se benzia todo, atrapaIhadamente, eu suava frio, enquanto os excomungados desapareciam por trás de uma touceira de carrapichos.
Desamarramos a canoa, acendemos a poronga e caímos em cima dos remos com sustância, doidos para
sair dali o mais depressa possível. Olhei para o fundo da montaria e vi peixe a valer.
- Vamos embora - falei ao meu companheiro -: já pescamos o bastante pra comermos um mês.
E arribamos. Para espantar os carapanãs, voltamos a fumar. Já fora do igapó, fiz a pergunta que vinha querendo fazer ao preto velho.
- Mas, João, e a polícia nunca procurou saber desse caso?
- Polícia? Propriamente nós não temos polícia, doutor; o que nós temos aqui é o Praxedes, diz que o Delegado, que bebe mais do que um gambá. Um dia ele chamou ele lá na delegacia e lhe perguntou:
- “Olhe aqui, sêo Chico: então o senhor não se envergonha dessa tamanha monstruosidade que praticou com as suas filhas, hem? ..."
Chico Bicho, que já tinha tomado uns esquenta-peito, olhou bem pro Praxedes e, coçando inda sua mundícia, lhe perguntou, também, respondendo:
"- Ara, ara sô delegado, me arresponda com a franqueza que deve de ter. Vosmicê acha, então, que a gente deve plantar bananeira pros outros colher os cacho...?”

II

O barracão estava próximo. Mais umas remadas e chegamos. Não provoquei mais o assunto com João Queimado. O que escutara e vira eram bastante para me deixar aquela noite em claro. Peguei meus teréns e subi correndo o barranco.
- Até outro dia, João.
- Até outro dia, doutor.

O contista do Amazonas


Arthur Engrácio (1927-1997), genial escritor, poeta, contista, crítico literário, romancista e jornalista amazônida. Nasceu no dia 16 de abril de 1927, na cidade de Manicoré, no Amazonas. Engrácio foi um legítimo representante do "Clube da Madrugada", ao qual se juntou, logo após chegar a Manaus. Formado em Jornalismo, foi um dos precursores da prosa de ficção na moderna literatura amazonense e consolidou-se como ficcionista identificado com os elementos da realidade regional, ponto forte de sua obra.Conforme o poeta Thiago de Mello, que foi seu amigo, Arthur mostrou seu amadurecimento como escritor em sua obra póstuma “São José do Uruá”. Também exerceu a profissão de jornalista especializado em crítica literária e com o romance “Áspero Chão de Santa Rita” recebeu o Prêmio Suframa de Literatura. Seu nome consta na antologia da Cultura do Amazonas e também na Enciclopédia da Literatura Brasileira, organizada por Afrânio Coutinho.Arthur Engrácio foi um dos poucos escritores que participaram do Clube da Madrugada e se dedicou à crítica literária. Por seu universo literário se centrar em questões amazônicas, desdobra-se em duas vertentes: a regionalista e a mítica. Seu livro de estréia “Histórias do Submundo” e uma de suas últimas obras publicadas “A Vingança do Boto”, 1995, confirma o vigor de sua técnica. A Amazônia, que foi muitas vezes massacrada e vista como fim do mundo, ganha papel importante na escrita de Engrácio. Mesmo que tenha se colocado sempre de forma original, ele não foi um inventor de formas literárias, apenas foi um escritor do mundo natural e mítico, criando e encerrando uma era na literatura amazonense. Deixou para nós, um romance inédito, “São José do Uruá – Um Mergulho no Mundo Mágico da Boiúna”. Conforme nos conta, Arlene Souza Engrácio, sua filha, ele lutou até a morte para manter-se vivo intelectualmente. E assim ficou sua obra, imortalizada.

Fonte:
http://www.call.org.br/reportagem_abril3.asp

Leia também outro conto de Engrácio já publicado no Blog do Said Dib, chamado Gregório

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