A paixão segundo a infância
Para mim, a palavra felicidade está associada à infância. É quando descobrimos o mundo e a beleza explode na descoberta das cores, da luz, do céu, das nuvens que caminham, das árvores, das águas e das flores. Tudo são formas que nascem a nossos olhos e conhecemos, pela primeira vez, o sentimento de amor que pousa no carinho de nossas mães. Vem o canto dos pássaros, o voo das andorinhas, o descobrir os bichos e tudo é revelação. Depois, a infância é o tempo da estreita amizade com Deus, o menino Jesus é nosso companheiro, colega e cúmplice em nossas travessuras. Não chegaram as preocupações e dúvidas que nos darão o saibo da amargura de viver, que fica sempre com uma parte dos nossos anos, embora Aristóteles tenha afirmado que "o homem é o que de mais excelente existe no cosmo". Petrônio, no aforismo de sua duvidosa autoria, diz que "primeiro o medo criou Deus". Deus criou a minha infância. Ele era a sombra que eu sabia ter me dado a vida e me assegurava a eternidade que naqueles tempos não era o céu prometido, mas o paraíso que ele me dera para viver: a Terra. A casa do meu avô, o engenho, os campos verdes, os sons dos sinos tocando nas alegrias, até que com os anos a vida passasse a ter o cheiro azedo da garapa. Meu Jesus Cristinho morava na minha cidade de São Bento, onde despertei para a vida. Ele estava na igreja entre as colunas pintadas imitando mármore. Nos tempos da paixão, eu chorava com a revelação de que homens maus o tinham crucificado, pregado na cruz, trespassado por lança e Judas o traíra. O tempo da Quaresma era a oração e o silêncio em que os nossos jogos e sorrisos não podiam ser exuberantes porque Jesus iria morrer. A procissão do encontro, o Bom Jesus da Cana Verde, o lava-pés, o canto da Verônica e as estações da paixão. Tudo tinha um sentido misterioso onde a razão não entrava, só a emoção. A igreja governava as nossas referências, o domingo, as ladai-nhas, o rosário, as nossas súplicas e conversas com Deus. Mi-nha mãe nos ensinava tudo sobre o segredo da vida, do céu e da terra, a paixão e a morte de Jesus. Eu esperava ansioso pela ressurreição, o coro em que nós cantávamos nas aleluias: "Jesus já não morre mais/ prostrai-vos, ó mortais/ junto aos céus eternais/ celebrai o rei da glória". E os carrilhões a toda força anunciavam a ressurreição, a da expressão de são Paulo, que afirmava: "sem ressurreição, não há cristianismo". Toda Sexta-Feira Santa é para mim plena da restauração da infância. E, como diz são João, "Jesus amou os homens até o fim". Aleluia.
José Sarney foi governador, deputado e senador pelo Maranhão, presidente da República, senador do Amapá por três mandatos consecutivos, presidente do Senado Federal por três vezes. Tudo isso, sempre eleito. São 55 anos de vida pública. É também acadêmico da Academia Brasileira de Letras (desde 1981) e da Academia das Ciências de Lisboa
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