Vinte anos de constituição
Sob a égide da Constituição em 1988, o povo brasileiro esperava soluções fundamentais para o novo Estado de Direito: governos honestos, comprometidos com a ética, a moralidade e a eficiência (art. 37). E democracia com absoluta independência dos poderes (art. 2º), de forma que o Legislativo, livre do jugo do Executivo, pudesse cumprir seus deveres, antes amordaçados pela ditadura que o transformou numa caricata assembléia repetitiva da ladainha dos “améns”.
Tanto os governos que se seguiram à promulgação da Constituição, quanto as legislaturas, tornaram-se completa decepção se analisados sob o ponto de vista da disposição de trabalhar e de legislar bem. A tal ponto permaneceram omissos, que provocaram um fenômeno no processo legislativo brasileiro: o Supremo Tribunal Federal passou a suprir a falta das leis de concreção através de julgamentos fundados na combinação de comandos constitucionais. Fidelidade partidária, greve do funcionalismo público, nepotismo e outras injunções decretadas à base do desespero.
O que ocorreu nesses 20 anos? A austeridade ética foi banida da prática administrativa e política na União, nos estados e nos municípios. Essa tragédia moral acabou por desfigurar o próprio Estado de Direito ao reduzir o Poder Legislativo ao nada que era durante a ditadura militar. A grande maioria das emendas constitucionais, nesses 20 anos, foi obra do Poder Executivo para fortalecer-se e desequilibrar a independência dos poderes.
O Executivo voltou a dominar o Congresso Nacional exatamente como no tempo da ditadura militar. Não se utiliza da força, ou da cassação de mandatos, mas obtém o mesmo efeito através de persuasões inconfessáveis, mensalão, cargos, diretorias de estatais, criação de ministérios com um número imensurável de empregos e sinecuras. Essa patologia contaminou o processo eleitoral e, com base no dispositivo constitucional de que todos são inocentes até o trânsito em julgado da condenação, aventureiros de toda ordem são candidatos a postos eletivos. Até assassinos, como acontece no Rio de Janeiro.
Aquilo que se via na ditadura, sargentos, tenentes, capitães, coronéis, instalados em funções civis, foi substituído por ex-sindicalistas, políticos não eleitos, falsos líderes de comunidades urbanas, invasores de áreas rurais, desde que assegurem dividendos eleitorais. Origens diferentes, mas iguais no despreparo técnico e na arrogância, sem falar-se na concupiscência. O sonhado sistema de pesos e contrapesos desapareceu. Foi substituído por grampos e contra grampos, hipótese não prevista por Montesquieu, que também não previu o estado policial no sistema democrático.
Fizeram, no nosso direito constitucional, tantos estragos como os terroristas de Bin Laden nas torres gêmeas de Nova York. Cito apenas um da Emenda Constitucional no 32, de 11 de setembro de 2001, em invocação à data fatídica. O trancamento da pauta de ambas as casas do Congresso através de medidas provisórias, segundo o § 6o, do art. 62, da Constituição, acrescentado por essa emenda constitucional. Inútil será comentar o uso de medidas provisórias em matérias sem relevância e sem urgência. Ninguém mais liga para isso. Hoje se baixa medida provisória para qualquer coisa. É a mais freqüentada prostituta do processo legislativo.
Menciono, porém, o efeito de trancamento das pautas para demonstrar como o parlamento brasileiro desceu à insignificância de permitir a suspensão de seu funcionamento por atos do Executivo. Qual a diferença das truculências da ditadura militar? O Poder Legislativo brasileiro está paralisado por medidas provisórias e favores permanentes. Antes eram as ordens do dia baixadas por generais. Mas antes e hoje o parlamente não funciona como instituição fiscalizadora.
Na crítica prefiro parar por aqui, uma vez que o espaço é limitado. E peço desculpas aos parlamentares honestos, que ainda os há, tanto entre os governistas quanto entre os de oposição, e que deveriam ser protegidos pelo Ibama por serem espécie em extinção. Impossível, porém, deixar de denunciar não terem sido alcançados os objetivos maiores da Constituição de 1988, a moralidade pública e, em contraste com a ditadura, o Estado de Direito com independência dos poderes.
Mas, por outro lado, a Constituição assegurou as liberdades públicas e individuais, o direito à informação, a liberdade de expressão, o que fez surgir uma imprensa sadia, livre, que diariamente discute tudo e provoca debates na nossa morna sociedade. Thomaz Jefferson dizia que entre um governo sem imprensa e uma imprensa sem governo, preferia esta última hipótese para dar ênfase à importância da liberdade de expressão como expressão de todas as liberdades.
Outra grande vantagem da nova ordem constitucional, que se aperfeiçoou nestes 20 anos, foram as garantias trabalhistas e a liberdade de mercado, a livre iniciativa econômica que tem proporcionado estabilidade da moeda e progresso para o país, mesmo diante de despesas inúteis da política pública que prioriza empregos para os companheiros em detrimento de investimentos.
Leia o artigo completo...
Saulo Ramos é advogado, foi Consultor Geral da República e ministro da Justiça (governo Sarney). É autor do livro "Código da Vida".
Sob a égide da Constituição em 1988, o povo brasileiro esperava soluções fundamentais para o novo Estado de Direito: governos honestos, comprometidos com a ética, a moralidade e a eficiência (art. 37). E democracia com absoluta independência dos poderes (art. 2º), de forma que o Legislativo, livre do jugo do Executivo, pudesse cumprir seus deveres, antes amordaçados pela ditadura que o transformou numa caricata assembléia repetitiva da ladainha dos “améns”.
Tanto os governos que se seguiram à promulgação da Constituição, quanto as legislaturas, tornaram-se completa decepção se analisados sob o ponto de vista da disposição de trabalhar e de legislar bem. A tal ponto permaneceram omissos, que provocaram um fenômeno no processo legislativo brasileiro: o Supremo Tribunal Federal passou a suprir a falta das leis de concreção através de julgamentos fundados na combinação de comandos constitucionais. Fidelidade partidária, greve do funcionalismo público, nepotismo e outras injunções decretadas à base do desespero.
O que ocorreu nesses 20 anos? A austeridade ética foi banida da prática administrativa e política na União, nos estados e nos municípios. Essa tragédia moral acabou por desfigurar o próprio Estado de Direito ao reduzir o Poder Legislativo ao nada que era durante a ditadura militar. A grande maioria das emendas constitucionais, nesses 20 anos, foi obra do Poder Executivo para fortalecer-se e desequilibrar a independência dos poderes.
O Executivo voltou a dominar o Congresso Nacional exatamente como no tempo da ditadura militar. Não se utiliza da força, ou da cassação de mandatos, mas obtém o mesmo efeito através de persuasões inconfessáveis, mensalão, cargos, diretorias de estatais, criação de ministérios com um número imensurável de empregos e sinecuras. Essa patologia contaminou o processo eleitoral e, com base no dispositivo constitucional de que todos são inocentes até o trânsito em julgado da condenação, aventureiros de toda ordem são candidatos a postos eletivos. Até assassinos, como acontece no Rio de Janeiro.
Aquilo que se via na ditadura, sargentos, tenentes, capitães, coronéis, instalados em funções civis, foi substituído por ex-sindicalistas, políticos não eleitos, falsos líderes de comunidades urbanas, invasores de áreas rurais, desde que assegurem dividendos eleitorais. Origens diferentes, mas iguais no despreparo técnico e na arrogância, sem falar-se na concupiscência. O sonhado sistema de pesos e contrapesos desapareceu. Foi substituído por grampos e contra grampos, hipótese não prevista por Montesquieu, que também não previu o estado policial no sistema democrático.
Fizeram, no nosso direito constitucional, tantos estragos como os terroristas de Bin Laden nas torres gêmeas de Nova York. Cito apenas um da Emenda Constitucional no 32, de 11 de setembro de 2001, em invocação à data fatídica. O trancamento da pauta de ambas as casas do Congresso através de medidas provisórias, segundo o § 6o, do art. 62, da Constituição, acrescentado por essa emenda constitucional. Inútil será comentar o uso de medidas provisórias em matérias sem relevância e sem urgência. Ninguém mais liga para isso. Hoje se baixa medida provisória para qualquer coisa. É a mais freqüentada prostituta do processo legislativo.
Menciono, porém, o efeito de trancamento das pautas para demonstrar como o parlamento brasileiro desceu à insignificância de permitir a suspensão de seu funcionamento por atos do Executivo. Qual a diferença das truculências da ditadura militar? O Poder Legislativo brasileiro está paralisado por medidas provisórias e favores permanentes. Antes eram as ordens do dia baixadas por generais. Mas antes e hoje o parlamente não funciona como instituição fiscalizadora.
Na crítica prefiro parar por aqui, uma vez que o espaço é limitado. E peço desculpas aos parlamentares honestos, que ainda os há, tanto entre os governistas quanto entre os de oposição, e que deveriam ser protegidos pelo Ibama por serem espécie em extinção. Impossível, porém, deixar de denunciar não terem sido alcançados os objetivos maiores da Constituição de 1988, a moralidade pública e, em contraste com a ditadura, o Estado de Direito com independência dos poderes.
Mas, por outro lado, a Constituição assegurou as liberdades públicas e individuais, o direito à informação, a liberdade de expressão, o que fez surgir uma imprensa sadia, livre, que diariamente discute tudo e provoca debates na nossa morna sociedade. Thomaz Jefferson dizia que entre um governo sem imprensa e uma imprensa sem governo, preferia esta última hipótese para dar ênfase à importância da liberdade de expressão como expressão de todas as liberdades.
Outra grande vantagem da nova ordem constitucional, que se aperfeiçoou nestes 20 anos, foram as garantias trabalhistas e a liberdade de mercado, a livre iniciativa econômica que tem proporcionado estabilidade da moeda e progresso para o país, mesmo diante de despesas inúteis da política pública que prioriza empregos para os companheiros em detrimento de investimentos.
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Saulo Ramos é advogado, foi Consultor Geral da República e ministro da Justiça (governo Sarney). É autor do livro "Código da Vida".
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