Hannah Arendt pensou o perdão como um valor central da vida política. Graças a ele, a convivência fraturada, próxima ao abismo do que se considera como atos humanos, pode ser reconstituída, dando início a um novo começo. Em algum momento, dentro do contexto de lutas das mais violentas pelo poder, uma linha divisória deve ser demarcada, pois sem ela a vida política ameaça recair no caos de vinganças sem rumo, impossibilitando a sociabilidade civilizada. A história oferece inúmeros exemplos de sociedades que se perderam - ou continuam se perdendo - por terem desconsiderado esta lição básica: olhar para o futuro, e não se voltar para um passado que espreita por mais retaliações. Olhando para a frente uma sociedade se reconstrói, olhando para o passado ela se recusa a uma nova construção, contentando-se com moradias destruídas. A doutrina de Cristo prestou, mediante a valorização moral do perdão, uma contribuição inestimável à humanidade. Indivíduos puderam ter um firme apoio a partir do qual ousaram reconstruir sua vida, vendo no outro não alguém sempre objeto de uma vingança futura, mas que pudesse entrar numa relação de convivência pacífica, por maiores que tenham sido no passado as razões de discórdias e lutas. O outro, pelo perdão, passa a ser parceiro de um projeto comum, por maiores que tenham sido as desavenças subsistentes. O importante, em todo caso, consiste num ato moral de pacificação, de mútuo perdão, de modo que a vida de cada um possa, enfim, recomeçar. Quantas vezes presenciamos, em nossa vida familiar e amorosa, a importância do perdão, para que desde simples mal-entendidos até ofensas possam ser vistos sob uma outra perspectiva moral, constituindo-se em novas oportunidades de vida. Quantas vezes relações de amizade são preservadas pelo uso do perdão, revelando uma genuína preocupação com o outro, tomado como amigo e parceiro a ser valorizado. O recente debate sobre a validade da Lei de Anistia, com alguns procurando reabrir a questão, por meio de um viés ideológico de apropriação dos direitos humanos, mostra o desconhecimento, se não o desrespeito pelo perdão, que inaugurou uma nova etapa da vida brasileira. Foi graças à Lei de Anistia, com o perdão que todos os partícipes se deram, que o País ingressou na vida democrática, que perdura até hoje, mostrando a sua vitalidade. Sem o reconhecimento do perdão estaríamos reféns de retaliações das mais diferentes espécies, conduzidas por aqueles que alternadamente se sentissem poderosos para empreender tais tipos de ação. A transição brasileira pará a vida democrática foi um exemplo para o mundo e, como tal, deveria ser preservada. Ela não denigre o País, mas, na verdade, o dignifica.
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Abrir feridas do passado viola a reconciliação, que dignifica o País
Um ato desse tipo necessariamente envolve todos os lados, seqüestradores, assassinos e torturadores. Teríamos preferido que tais atos de violência não se tivessem produzido, mas cabe toma-los como ensinamentos do que não deve jamais se repetir. Abrir essa ferida, pertencente ao passado, obrigatoriamente daria lugar a desdobramentos imprevisíveis, violando a reconciliação tão penosamente alcançada, fazendo do perdão algo sem valor. Se não tivesse havido essa conjunção de políticos de horizontes distintos, alguns inimigos até pouco tempo atrás, o Brasil teria sido vítima de rancores e vinganças incessantes, que só produziriam fraturas e divisões, sem que pudesse se vislumbrar um novo futuro. Não teríamos tido como presidentes e vices Tancredo Neves e José Sarney, este vindo a assumir a Presidência, Fernando Henrique Cardoso e Marco Maciel, Lula e José Alencar. De horizontes e formações distintas, souberam todos valorizar e defender a democracia, sendo os legítimos frutos e representantes de uma sociedade què soube reconciliar-se com o seu passado, apostando no seu futuro.
*Denis Lerrer Rosenfield é professor de Filosofia na UFRGS.
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